Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (17 Março 2021)
«Já não vale a pena considerar aquilo que podemos assistir quotidianamente como episódios isolados. Não: os cancelamentos, as proibições, as constantes modificações da linguagem são sinais claros de que a nova ortodoxia está para ficar se nós deixarmos. A supressão do debate está instalada desde o início da década de 90 do século passado, intimamente ligado ao que ficou conhecido como Politicamente Correcto. Peter Coleman, um antigo ministro australiano do Partido Liberal chamou-lhe uma “heresia do liberalismo” e foi mais longe: “O que começou como um assalto liberal à injustiça tornou-se, não pela primeira vez, uma nova forma de injustiça”. Sobre este “não pela primeira vez” há muito que dizer. Mas antes olhemos para o agora.
E agora, só para falar nos tempos mais recentes, há isto: Pepe Le Pew, uma doninha ultra-namoradeira e protagonista de um desejo animado, é banida por supostamente “incentivar à violação”. Outro personagem de ficção, James Bond, para além de sofrer pressões por corresponder a uma minoria supostamente privilegiada e de sexualidade condenável para esta Ortodoxia (leia-se branco e heterossexual) é ainda censurado por “induzir a comportamentos alcoólicos”. Uma antropóloga brasileira de méritos académicos exemplares e conhecido activismo anti-racismo, Lilia Schwarcz, foi linchada nas redes sociais por um texto em que criticava (!) o visual africano de Beyoncé no Black Is King . Principal argumento dos que a atacam: é branca. O caso dos requisitos para quem queira traduzir o poema da tomada de posse de Joe Biden escrito por Amanda Gorman – uma jovem negra – é também já conhecido: para o poder fazer é necessário ser negro e de preferência activista. Seis livros de um dos mais acarinhados escritores de livros infantis, Theodore Seuss, foram retirados de circulação por conterem “elementos racistas”. Os autores canónicos da literatura ocidental (expressão que já por si é perigosa de utilizar neste período inquisitorial) estão a ser retirados dos currículos académicos por representarem a opressão heteropatriarcal, o imperialismo ou a supremacia branca. E sim, falo de Homero ou de Shakespeare.»