Luís Carmelo no Hoje Macau (11 Fevereiro 2021)
«A rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a metempsicose platónica às redenções do Ganges com um tipo de instantaneidade que hoje brilha de modo natural no instinto das nossas crianças. Em segundo lugar, porque a febre da actualização (o deslumbre do ‘refresh on-off’) já se tornou numa aprendizagem que nos diz que um corpo só é de facto um corpo, se estiver sempre conectado com a rede.
Esta reinvenção da vida que se baseia no ‘update’ permanente afasta-nos das tradições melancólicas, pois passamos o tempo a nadar nas vagas do presente como se nada mais existisse. A tradição da melancolia sempre se associou a um tipo de “História” – ou a um conjunto de narrativas –, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. Contudo, nas últimas décadas, esse tipo de narrativas estáticas – que me educaram na escola e fora dela – foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua territorialidade imperial.
A supremacia do ‘Agora’ passou a governar todas as novas melancolias, convertendo-as numa doce ansiedade que apenas se conforma ao teclar ou ao deslizar com o dedo sobre os ecrãs. Já não existe hoje a melancolia que se estruturava em objectos fixos (na Carta medieval do Pseudo-Hipócrates, a bílis era ainda o humor da melancolia), tendo esta dado origem a uma outra que se dilui na exaltação das interacções e na acelerada ‘desreferenciação’ da vida e do quotidiano.
Quando penso neste tipo de efeitos que decorrem da nossa ininterrupta ligação à rede, ocorre-me quase sempre Maurice Blanchot, no momento em que, possuído por uma espécie de desespero apocalíptico, se pôs a imaginar o último escritor sobre a terra (o autor referia-se ao escritor, enquanto figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre nas arenas do espaço público). Quase no final de Le livre à venir (Gallimard, 1959), Blanchot colocou em cena a morte do último escritor e questionou, alarmado: o que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, era clara: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases de que me lembro muitas vezes.»