Luís Carmelo no Hoje Macau (25 Fevereiro 2021)
«Na primavera de 1999, passeava com o Urbano [Tavares Rodrigues] em Paris pelas bandas da Rive Gauche e contei-lhe este sonho e esta história. Estávamos a peregrinar pelos locais onde antes ele costumava deambular na companhia de Camus.
Falavam os dois muito de futebol. “A bola muda sempre de direcção”, bela metáfora para compreender que o pensamento se inicia num arrebatamento, ou numa compulsão que se divide, que inflama, que quase se perde. Camus falava depressa e a sua paixão pelo futebol alimentava-lhe a certeza de que pensar não é uma coisa inata; é antes um engendramento ou uma jogada que começa na lateral do relvado. E a sua missão é ampliar a dimensão do jogo, driblar e agarrar o fio do raciocínio apesar dos obstáculos (oferecidos pela outra equipa, pela vida). Por baixo da gramática e da lógica, esses tapetes pouco lascivos, existe um jogador elástico que explode e que não se submete a imagens, cria-as. O pensamento fulmina no golo, mas não sucumbe nessa metonímia (que arrasta consigo quer o gáudio de uns, quer a tristeza de outros, quer a diferença que afinal lhes alimenta o ser).
Antes da tuberculose, Camus tinha sido guarda-redes na Argélia. Falava menos na doença e mais nas grandes avançadas. “A bola muda sempre de direcção”, repetia o Urbano a sorrir e a lembrar-se da frase. Tal como aquele advogado, em A Queda, que não foi capaz de salvar a mulher de se afogar. E foi aí, devido à coincidência, que lhe li um poema, cuja versão inicial escrevera em Amesterdão uns anos antes: “Nunca soube por que cheguei tarde/ mas sei/ (na mesma prumada/ quase no mesmo catavento tornado em pedra)/ que assim foi./ Também apurei que Camus escreveu a queda/ no México City/ ficava ali no bairro vermelho/ nas ins-suspensas esplanadas cheias de neve / entre dois a sete parágrafos/ nesses fins de tarde passava por lá todos os dias/ e não havia tricot para distribuir/ aos amigos./ Porque os amigos são faunos.”.»