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Desenterrar o visível

Luís Carmelo, no Hoje Macau (11 Março 2021)

«Alguns anos antes, estavas em Sintra e observaste o imperador da Etiópia, Hailé Selassié, a acenar dentro de um carro preto que tinha o tamanho de uma lança sem terminação. Uma lança que ainda hoje vês passar por ti tantas vezes. Foste ao encontro dos fungos que se instalam na memória e confirmaste que a visita teve lugar nos últimos dias de Julho de 1959, ano em que o romance ‘Aparição’ foi lançado.
Entre essa data e 1996, a bandeira da Etiópia mudou oito vezes. As listas horizontais vermelhas, verdes e amarelas mantiveram-se, mas o leão da Judá do tempo de Selassié transformou-se numa estrela de cinco pontas. Lembras-te ainda de que havia rendas junto à janela onde a mão do imperador se agitava. Nunca tinhas olhado para um imperador e toda aquela sobreinvestida fez-te pensar, suspender os séculos. 
No ano em que a bandeira da Etiópia inaugurou a sua última versão, cruzaste-te no funicular de Haifa com vários soldados etíopes. Eram judeus etíopes. À saída, um deles avançou na tua direcção e disse: “I´ve been there!”. E ali ficou com o dedo a apontar para o Mediterrâneo, na direcção do sol-pôr. E tu entendeste que o alvo era inevitavelmente Sintra. Concluirias, nesse instante, que o entendimento é uma teologia sem deus ou o fac-símile de uma primeira pessoa confusa (a olhar para o mar). E lá continuaste a jornada, sempre a subir, em direcção ao monte Carmelo. Nesse mesmo dia – era 1 de Março – morreu Vergílio Ferreira.
Alheio à morte, às metamorfoses das bandeiras e às taras do Selassié, Vergílio Ferreira continuou a sua tarefa de desenterrar o visível. »

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