Publicado em

Nos alçapões da história

Luís Carmelo, no Hoje Macau (18 Março 2021)

«O efeito surpresa de um texto redigido de início com fins instrumentais não é algo assim tão incomum. Durante alguns anos estudei manuscritos que foram escondidos, no final do séc. XVI, dentro de paredes e poços de aldeias do levante aragonês. Apenas no final do século XIX e por força do acaso viriam a ser descobertos. Nesses textos coexistiam heranças, procurações, testamentos – passagens meramente instrumentais – e registos poéticos luminosos. Um misto que faz hoje arrepiar quem os consiga ler, pois são aljamiados e estão grafados em alfabeto árabe. Transcrevo aqui um brevíssimo excerto (hoje inscrito no Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris): 
“- Ainda se levantará (fol.302v), no dia do juízo, um homem da minha comunidade (alumma) na ilha da Andaluzia que fará guerra santa (aljihâd) no caminho de Deus (fí sabíli Allah)./ Não se especificará, nem se saberá (sabrán) quando se levantará o dia do juízo, daqui até que se vejam os montes que (entretanto já) se tenham aplanado (ke se abrán ap(a)lanado)./ Foi relatado pelo mensageiro de Allah, salla Allahu ‘alayhi wa sallam (Deus o abençoe e o salve), que disse:/ – Andaluzia tem quatro das portas do paraíso (aljannat). Uma porta a que chamam (fol.fol.303r) Faylonata e outra porta (chamada Lorca), e outra porta a que chamam Tortosa e uma outra porta a que chamam Guadalajara.”.
O texto é ascendente: caminha da sombra mais profunda da gruta até à luz. Como se estivéssemos face a uma poética que nos transporta do subterrâneo da história até ao olhar do presente admirado que o lê. Trata-se de uma memória (e também de uma confissão involuntária) oriunda de uma comunidade ibérica – os “moriscos” – que sucumbiu e cuja autobiografia ficou espalhada dentro de alvenarias em fragmentos e retalhos anónimos como este.
Há discursos que nasceram para não encontrar os seus leitores. Um guião é escrito para morrer nas filmagens. E um texto clandestino de um “morisco” de Aragão (inserido por um copista numa miscelânea e colocado depois dentro de uma parede por um terceiro, antes de se pôr em fuga à inquisição) terá sido escrito para morrer consigo nos mais profundos alçapões da história. »

Share