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A maldição de Salieri

Paulo José Miranda no Hoje Macau (9 Março 2021)

«Quando, em 2017, Andrzej Górzki publica o ensaio chamado «O Lado Solar de Salieri», tornou-se de imediato alvo do «regime» polaco. Górzki nunca chega a citar quaisquer nomes, nunca pessoaliza, embora o governo polaco se tenha sentido atacado, conseguido retirar o livro de circulação e obrigando o autor a pagar uma multa, sem qualquer base constitucional. O ensaio é dividido em três partes distintas. Mas antes avançarmos para o livro, é preciso ter em atenção duas coisas prévias: primeiro, o Salieri de Górzki não é o de Pushkin, embora seja fundado neste; segundo, à personagem de Pushkin, Górski retira-lhe a inveja ou outras fraquezas, ficando apenas aquilo a que o autor polaco chama «capacidade de apreciar o génio que não tem». Aquilo que Górzki pretende é, por um lado, conceptualizar a apreciação e o conhecimento, que são os instrumentos de se poder compreender o génio e, por outro, mostrar como isso pode e deve levar sempre a defender o que mais importa. Porque a tese de fundo do autor é educacional.
Posto isto, na primeira parte do livro, Górski introduz a personagem de Salieri como conceito que descreve todo aquele que não é suficientemente estúpido para não dar importância ao génio, nem tão inteligente quanto o génio, apenas o suficiente para entendê-lo, perceber a diferença que há entre ambos e com isso prestar-se a defender aquilo que ele cria. Leia-se o que o autor entende por «estúpido» e por «génio»: «[…] estupidez enquanto incapacidade de entender aquilo que está a ouvir, a ler, a acontecer. A estupidez é a surdez da alma. E surdez é metáfora para incapacidade de apreciar não apenas o que a grandeza humana nos dá, mas também a beleza da natureza e o gesto de que pode conduzir a melhorar a cidade. Génio é a capacidade de acrescentar, de modo radical, beleza, conhecimento ou bem-estar ao mundo.» Quanto a Salieri, e enquanto conceito, escreve: «Se a estupidez ou o génio são incontroláveis, pois ninguém pode fazer nada quando a ser um ou outro, ser-se Salieri depende inteiramente de nós. E quem é este que podemos ser? Aquele que se esforça por ser melhor do que é, a cada dia, a despeito de saber que não pode ser Mozart.» No fundo, Salieri é «[…] aquele que somos. Aquele que aprendeu a conhecer e a apreciar a beleza e o conhecimento, e embora não seja suficientemente inteligente ou genial para produzi-los, consegue defender o génio, ao entendê-lo e promovê-lo. A beleza e o conhecimento são também visíveis no espaço público, na política e na educação. Educar, desde a Antiga Grécia, a par da boa gestão pública da cidade, é a mais bela das actividades humanas.»
Estender o conceito de génio à política e à educação e à transformação da cidade foi o que lhe trouxe todos os problemas que tem tido com o «regime». «Salieri compreendeu o génio de Mozart quando mais ninguém o compreendia. Porquê? Porque foi educado para isso. Não se pode ser educado para o génio, mas pode-se ser educado para o entender. Ninguém é educado para a ditadura, mas pode ser educado para a democracia.»
Na segunda parte do livro, Górzki afirma que o nosso tempo é o tempo onde já não há «Salieris», apenas estúpidos e raramente génios. O génio tem também uma decadência neste nosso tempo. «O génio hoje é aquele que joga à bola, que apresenta um programa de televisão ou forma um partido de matriz prepotente. […] E a maioria das vezes são os estúpidos a consagrar os génios. Porque o génio do nosso tempo é ter sucesso e falar mais alto e o que a maioria quer ouvir. […] estúpido não é não contrário a não ser eficaz numa profissão ou numa qualquer actividade, mas surdo para a alma, incapaz de se abrir ao que é o belo e o melhor para todos».
Na terceira parte do livro, o autor polaco tenta mostrar-nos como Salieri – o Salieri Solar, como lhe chama – nos faz falta e de que modo deveríamos privilegiar a formação de «Salieris» na nossa sociedade. Escreve: «A educação, desde a mais tenra idade, deveria concentrar-se em formar “personalidades Salieri” ao invés de estimular a formarem-se “Mozarts”. Até porque, como já vimos anteriormente [páginas antes, no ensaio], não é possível formar “Mozarts”, apenas aprender a apreciá-los. Mozart pode ser um Hitler, mas Salieri seria sempre um Churchill. Os humanos formam-se.»

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Uma questão darwiniana

«Durante muito tempo pensei que seria razoável alocar grande parte da responsabilidade pelo estado-de-coisas desanimador na estupidez generalizada e na aridez espiritual de que nenhuma técnica ou artefacto nos consegue aliviar. Por mais tecnicamente competentes que nos tenhamos tornado, cada homem e mulher continua a nascer tão oco como no início dos tempos. Acresce ainda a dificuldade de cada vez haver mais para conhecimento produzido por apreender, digerir e integrar. A educação, no sentido helénico do termo, continua a ser um percurso e uma responsabilidade individual. Pode ser que estejamos tão entretidos com a passagem do tempo e com a necessidade de preencher avidamente cada segundo desse andamento que não prestemos a devida atenção ao vagar, ao silêncio e ao que está mesmo ao nosso lado, a pedir olhos que vejam e mãos que cuidem.»

Valério Romão, no Hoje Macau (22 Janeiro 2021)

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