Luís Carmelo no Hoje Macau (20 Maio 2021)
«A palavra “perdição” é ambígua por natureza. Tanto se refere a uma pessoa ou coisa que desperta uma paixão irresistível por outrem como se refere a vício e até a condenação eterna. Por outro lado, designa ainda a figura da errância (uma pessoa perde-se, um pensamento perde-se, um mar perde-se, etc.). A palavra “perdição” ensina de facto a andar em muitas direcções. Por vezes ensina mesmo a voar.
E foi a voar muitas vezes sobre a Holanda que revisitei o abstracionismo geométrico de Piet Mondrian e as suas teosofias coloridas. Os campos, desenhados por polders de cromatismo sempre diferenciado e recortados por moinhos e canais, ilustram com concreta nitidez aquilo que é o neoplasticismo assim como o rasgo dos artistas que, a par de Mondrian, souberam cativar esta arte das raras proporções, casos de Theo Van Doesburg, Vilmos Huszar, Gerrit Rietveld, Georges Vantongerloo ou de Jan Wils. A paisagem é, de facto, uma enciclopédia de grande limpidez – que alimenta a errância, o vício e a própria paixão – e que sabe transformar o que parece abstracto em tangível, quase palpável.
Foi então que percebi que a minha Holanda é uma ilha. Incorporei-a, tal como a floresta incorpora a sua água, muito antes de ter conhecido o país com o mesmo nome. A minha Holanda é um conceito para a vida, um segundo perfil ou mesmo um contorno que me acompanha. Tudo começou no meu livro de geografia na pré-adolescência e, mais tarde, quando os aviões me levaram a sobrevoar (em ponte aérea de vários anos) o pequeno país onde haveria de viver durante uma década. O acaso e o fascínio atraem o nomadismo interior (a errância) e sabem convertê-lo em sedentarismo. »