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Calo-me quando morrer

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (16 Março 2021)

«É este o tom do romance, que acaba por ser quase todo narrado pela fala da septuagenária a dar as direcções até à casa do avô do narrador, enquanto descreve a vida dos habitantes da aldeia. Quando a jornalista, em Lisboa, perguntou a Enzo Rossi de onde lhe veio a ideia do livro, se tinha sido algo a que ele assistiu ou que lhe contaram, respondeu: «A ideia veio simplesmente de ver nas tabernas, nas lojas e nas praças de Palermo as pessoas a falarem da vida dos outros e de todos os acontecimentos do dia anterior, por mais insignificantes que fossem. Alguns mais velhos chegavam a repetir as mesmas histórias dias seguidos. As pessoas só se calam quando morrem. Custa-lhes mais o silêncio do que a fome, se esta não for prolongada.» Na altura em que li esta entrevista, tinha 24 anos, ainda não tinha lido o romance, e fiquei muito impressionado com aquela frase «as pessoas só se calam quando morrem». Mais impressionado ainda, porque já a tinha ouvido na primeira pessoa, quando era criança, por uma senhora num lugarejo perto de Sines: «calo-me quando morrer». Nesse tempo, ia muito para Sines, nas férias da escola, pois o meu pai, o meu avô e o meu tio-avô trabalhavam juntos e tinham lá uma casa. Aquela frase, que ouvi tantas vezes aquela senhora dizer, anos atrás, só agora me fazia sentido, ao ler aquela entrevista de Enzo Rossi. Nós temos uma relação estranha com a linguagem. Não falamos para dizer alguma coisa, mas para não estar calados, para não nos escutarmos no silêncio. Calar, só quando se morre. Quando já não nos é possível amordaçar o que podíamos pensar, o que podíamos contemplar.
Depois, e por causa daquela entrevista – na verdade por causa daquela frase – fui ler «A Aldeia». Evidentemente, quando cheguei às páginas do livro, já ia com esta frase e com tudo o que ela me tinha feito pensar e, talvez por isso, gostei muito do romance. Mas tenho a certeza de que a minha leitura sem aquela frase prévia, sem a entrevista do escritor, não teria sido a mesma. Sem «as pessoas só se calam quando morrem», que me levou à senhora da minha infância que dizia constantemente «calo-me quando morrer», teria lido o livro na superficialidade da sua narrativa. A frase que Enzo Rossi diz na entrevista nunca aparece no romance. Sem dúvida, sem essa frase anterior, seria capaz de reconhecer o engenho do escritor, quer pela ideia quer pela capacidade narrativa, mas pouco mais do que isso. O que me faz pensar: o que é que lemos quando lemos? Ou seja, do mesmo modo que aquela frase dita pelo escritor numa entrevista me fez ler o livro completamente fascinado, com «calo-me quando morrer» no horizonte de cada página, sem essa frase, de que maneira teria lido o livro? Numa neutralidade como a de quem ouve alguém contar uma história engraçada? Ou pior, deposto no preconceito de estar a ler uma historinha bem contada? Mesmo sem um pensar filosófico, não podemos deixar de ver que a linguagem encerra em si um enorme mistério: não se sabe o que ela nos diz. Nunca sabemos o que alguém lê quando está a ler. Nunca sabemos o que alguém ouve, quando está a ouvir. Este mistério é a própria linguagem, que nos faz falar até à morte. De tal modo, que preferimos não nos ouvir a nós mesmos a deixar de usá-la. Preferimos falar sem saber o que dizemos ou sem sequer nos perguntarmos sobre o que falamos, do que deixar de falar. Preferimos até falar da vida dos outros, de que não fazemos a mínima ideia, a não ser de vagos contornos, a ficar calados. Preferimos falar a não falar.»

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Quando eu for grande

«Em criança, Olga passa os dias a ler livros em casa, não apenas por ser filha única, mas porque também não se sente atraída pelas imagens dos ecrãs e dos monitores. Lê-se, à página 24: «Mas é na adolescência, aos 14 anos, que a leitura começa a tornar-se algo importante, que se destaca de tudo o resto que fazia no mundo, quando lê pela primeira vez “A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer” de Stig Dagerman: “Não possuo filosofia em que possa mover-me como peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo.” Estas palavras fizeram Olga descobrir o seu corpo, partes que nunca pensara que existiam, que não faziam parte dela. Mas descobriu algo ainda mais importante: que existia dentro dela o desconhecido, que só vibrava com o que lia. E o que lia, agora, fazia-a também sentir o mundo de modo diferente.»

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (12 Janeiro 2021)

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