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A arte de viajar sem sair do lugar

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (25 Junho 2021)

«Explico, sob o risco assumido de parecer pretensioso: gosto de viajar nos livros. Em pequeno, ao colo de Stevenson, Verne ou Salgari. Fui a todo o lado sem sair da sala – de resto como o próprio criador de Sandokan ou Corsário Negro, que sempre terá visto a Malásia ou o mar das Caraíbas sem a maçada de se ter de levantar da secretária.

Depois, mais tarde, a descoberta de um género literário pouco ou nada cultivado por estas bandas: a literatura de viagens. Como em tanta coisa, a cultura anglo-saxónica tratou de mostrar o caminho. E o caminho é este espelho, às vezes distorcido, que nos devolve o outro, a sua cumplicidade ou estranheza. Por exemplo, os relatos dos ingleses em Portugal durante os séculos XVIII e XIX sempre me fascinaram. E não falo das hipérboles sintrenses de Beckford ou Byron. No magnífico Retratos de Portugal – Sociedade e Costumes, escrito pelo capitão de infantaria escocês Arthur William Costigan entre 1778 e 1779 e que é uma recolha das cartas dirigidas ao irmão encontramos uma descrição notável e obviamente parcial do Portugal daquele tempo. Gosto muito de uma carta em particular em que o oficial se encontra em Faro na companhia de um adido militar britânico e um jovem padre português. Falam da biblioteca do Vice-Rei dos Algarves e o adido nota a escassez de livros interessantes, com a excepção de dois ou três sobre estratégia militar e uma Bíblia. Depois isto, que cito: “À palavra Bíblia, pronunciada pelo senhor Bagot, o jovem padre mostrou grande desejo de a ler, dizendo tratar-se de um livro que nunca lhe chegara às mãos”.

Portugal, país de viajantes por necessidade, engenho e terna cupidez, também tem os seus relatos. Mas o género, infelizmente, nunca se consagrou como no Reino Unido ou, de forma mais discreta mas nem por isso menos interessante, noutros países. Embarco de memória nos extraordinários livros de Peter Fleming (o irmão mais velho de Ian, o do James Bond, mas igualmente um sucesso editorial) ou abandono-me ao extraordinário On A Chinese Screen, livro de viagens de Somerset Maugham com capítulos quase impressionistas mas em que se consegue perceber a génese dos seus melhores contos. Aqui mesmo ao meu lado espera-me a primeira edição (1946) de When The Going Was Good, do meu ídolo Evelyn Waugh. Escrito entre 1929 e 1936 é uma jóia de humor, snobeira e descrição. Não resisto à citação de algumas linhas no original, escritas em Addis Abbeba na véspera da invasão de Mussolini e perfeitas na fotografia dos personagens: “ There was an American who claimed to be a French viscount and represented a league, founded in Monte Carlo, for the provision of an Ethiopian Disperata Squadron for the bombardment of Assab. There was a completely unambiguous British adventurer, who claimed to have been one of Al Capone’s bodyguard and wanted a job; and an ex-officer of the R.A.F. who started to live in some style with a pair of horses, a bull terrier and a cavalry moustache – he wanted a job too.”»

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