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Willy DeVille, o inquilino da sua própria vida

Paulo José Miranda no Hoje Macau (30 Março 2021)

«Caso queiram ver um concerto na Alemanha, acústico, um ano depois da sua mulher, Lisa, se ter enforcado e de ele se ter tentado matar, jogando o carro por uma montanha abaixo e ter partido mais ossos do que os que tinha, eis aqui: https://www.youtube.com/watch?v=O4F-KpSWMBo. Para quem queira apenas ouvir uma pequena canção dele, a última que canta nesse concerto, já no «encore», cliquem aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ioxeqbQCvMo. Nesse concerto em Berlim, está sentado, porque não consegue estar muito tempo de pé. Também já não tomava heroína há dois anos, embora esteja muito bêbado. Apesar disso, a actuação não perde nenhuma qualidade. Curiosamente, só se percebe que ele está bêbado quando pára de cantar, entre canções. Se vos falo desse concerto é porque Jacqueline D. Broussard o menciona várias vezes no livro, embora não seja o concerto preferido dela. Da primeira vez que o faz, escreve: «Apesar de estar sentado e de ser caucasiano, ninguém nos lembra tanto o mestre Sonny Boy Williamson a cantar “Nine Bellow Zero” como Willy DeVille na primeira canção. Não pelo registo de voz, mas por tudo o resto. Ali, naquele palco, ladeado por um piano e um contrabaixo, não é um homem que canta, é uma dor que se expressa. Não era apenas a culpa pelo enforcamento de Lisa ou por uma vida jogada à heroína, era fundamentalmente a consciência de ser um inquilino da sua própria vida. A culpa era apenas a moldura desse quadro em cinzas frescas.» Em 1984, Lisa tinha deixado Iggy Pop para casar com Willy. Viveram juntos 17 anos, até ao suicídio de Lisa. Willy já estava apaixonado por Nina, que se tornaria a sua terceira mulher. «As mulheres nunca foram um entretenimento para Willy. Neste sentido, era o oposto da rock star. Fora do palco, a mulher com quem vivia era o seu mundo. No tempo de Toots, Willy tinha três obsessões: Toots, cantar e a heroína.
No tempo de Lisa, também três obsessões: Lisa, cantar e a heroína. E as obsessões não têm ordem de prioridade.»
Jacqueline D. Broussard, também continuamente presa nas suas obsessões, em sete páginas, desmonta uma canção de menos de quatro minutos, de outro dos concertos de Willy, após o suicídio de Lisa, o concerto que ela prefere de entre todos os concertos do cantor, Avo Session, na Suiça. De facto, é arrebatador. A canção acerca de que Jacqueline D. Broussard escreve várias páginas é «Let It Be Me», dos Everly Brothers: https://www.youtube.com/watch?v=5bC8iYBlZ7g. Leia-se: «A diferença entre a versão dos Brothers e a de Willy não é a diferença que há entre a vida de um homem feliz e a de um homem triste, mas a diferença que há entre um chefe de família conservador e uma alma penada. De modo literário: a diferença entre a revista Cosmopolitan e um poema de Bukowski. Meses depois do concerto de Berlim, Willy volta a consumir heroína e, naquela actuação, naquele palco da Suíça, com aquela canção, acertava contas com o diabo. Se parasse de cantar, escutava uma voz dentro de si a dizer-lhe que tinha uma vida a devolver. E em que estado!… Em estado de culpa, e em estado de quem desperdiçou um dom único que lhe concederam. Aquele rosto, no palco, não é o de um homem. Mas a voz também não. Não é apenas o grave impossível, o vibrato perfeito, a afinação indefectível… Acima de tudo é o além, seja ele qual for, que se apresenta em forma de voz e faz ressoar em nós todo o bem e todo o mal que fizemos e que sofremos, como se estivéssemos na presença da versão contemporânea do filho de deus, incompreendido e trazido à Terra para sofrer, não como todos nós, mas por todos nós. Aquele homem, no palco, quase não consegue andar, quase não consegue falar de tão pedrado que está, de tão arruinada que está a sua vida, mas canta como se fosse uma ave canora. No palco, Willy encarna a Xerazade do Rei Shariar que é quando não está a cantar. Se parar de cantar, mata-se. E, enquanto canta, faz parar a morte. Quase sempre enfrentando-a, enunciando-a.»»

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Rock Reflection 2

Paulo José Miranda no Hoje Macau (2 Março 2021)

««Os Talking Heads, Brian Eno e Adrian Belew não estavam apenas atentos ao futuro [refere-se às inúmeras inovações sonoras] e aos ritmos mais ancestrais [influencias dos ritmos tribais africanos], a canção “Houses in Motion” mostra que também estavam muito atentos ao que de mais contemporâneo se fazia, com a magnífica guitarra de Adrian Belew a lembrar bastante o trabalho de um dos melhores guitarristas da época, Ricky Wilson, que viria a morrer de sida cinco anos depois do lançamento de “Remain in Light”. Ricky Wilson era irmão de Cindy Wilson, e ambos eram membros fundadores dos B-52’s, banda da Georgia, que gravara o primeiro disco no início de 1979, álbum com o mesmo nome da banda, e o segundo no início de 1980, «Wild Planet», portanto discos anteriores a “Remain in Light”. Ricky Wilson tocava guitarra de um modo muito peculiar, apenas com quatro cordas, as duas primeiras e as duas últimas; as suas guitarras não tinham as cordas do meio, a sol e a ré. Aliado a isto, usava várias afinações completamente fora da normal, sendo a mais usual afinada do seguinte modo: DA-BB (Ré, Lá-Si, Si). Isto implicava necessariamente um som original, que era amplificado por um Fender Silverface Deluxe e por uma palhetada percussiva, muito ritmada, por vezes como se fosse um baixo. E este som bastante percussivo e ritmado é precisamente o que Adrian Belew faz em “Houses in Motion”, como homenagem não apenas ao guitarrista dos B-52’s, mas como forma de sublinhar o que de melhor se fazia no final dos anos 70 e princípios de 80. Aliás, não terá sido por acaso que no ano seguinte, em 1981, os B-52’s tentaram fazer o terceiro disco, ainda com Ricky na guitarra, tendo David Byrne como produtor. Infelizmente, os desentendimentos foram tantos que o projecto não chegou a concretizar-se.» Outra das peculiaridades que contribuíam para o som característico de Ricky Wilson e que Louise Stanley não menciona era o uso de cordas muito mais grossas do que a maioria dos guitarristas usava: 0.13 (a maioria usava e usa 0.09 ou 0.10). E concordo em absoluto quando Louise Stanley escreve «Ricky Wilson é um dos guitarristas mais subvalorizado da música popular, que Adrian Belew reconhece e a quem presta homenagem.» Para não falar que o modo como fazia uso dos harmónicos irá influenciar directamente The Edge, guitarrista dos U2. Louise Stanley escreve: «Assim, sem dúvida que “Houses in Motion” é uma canção em que Adrian Belew presta uma homenagem justa e em tempo real não apenas a um dos mais originais guitarristas do seu tempo, mas também àquele que estava adiante do seu tempo, no tocante à amálgama entre música branca e música negra. Era uma forma de trazer para dentro do disco mais revolucionário da história – pelo menos ao tempo é – uma banda e um guitarrista que contribuíram para que isto fosse possível.» Repita-se a passagem de Louise Stanley: «Na música, qualquer que seja a sua expressão, não há revoluções que não sejam musicais.»»

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Rock reflection 1

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (23 Fevereiro 2021)

«Acerca de «Remain in Light», só recentemente tive conhecimento de que a minha experiência com o disco foi muito similar à de um importante músico pop-rock norte-americano, mais conhecido como vocalista e mentor dos Nine Inch Nails, Trent Raznor. Numa entrevista em 2020, Raznor disse que «Remain in Light» era o melhor disco de sempre. Não apenas o melhor da década de 80, como escreve Louise Stanley – «Estou convicta de que “Remain in Light” é o melhor disco da década de 80.”» –, mas o melhor de sempre. Leia-se o que Raznor disse na entrevista, acerca daquele que é para ele o melhor disco de sempre da história da pop-rock: «Trata-se de um dico que não entendo quando o ouvi pela primeira vez, no início dos anos 80. Nessa altura, vivia numa pequena cidade do interior, sem quaisquer actividades culturais. E, vindo do nada, chega este disco. Uma obra de arte estranha, sintética, polirrítmica, com influências africanas, que me baralharam todo. […] O que acontece com bons discos quando os ouvimos pela primeira vez, como neste caso, é que nunca sabemos bem com o que estamos a lidar. Não temos medida de comparação. Mas ficamos fascinados por eles, e depois de o ouvirmos seis vezes o disco começa a revelar-se. À décima audição estamos completamente apanhados. Mas mesmo quando o ouves pela trigésima vez, descobres coisas novas. Foi com “Remain in Light” que aprendi tudo isto e o vivi pela primeira vez.» A experiência que Trent Raznor descreve é muito similar à minha, embora nem por um momento duvide de que ele escute melhor esse disco do que eu, pois não duvido que tenha melhor ouvido e saiba mais de música pop-rock do que eu, além de ter sido considerado imortal por David Bowie, que tinha grande admiração por Trent. Bowie e Raznor fizeram uma tournée juntos em finais de 1995 início de 1996 e também uma música e vídeos, «I’m Affraid of Americans». É muito provável que a musicalidade de Trent Raznor, e o encontro entre ambos, tenha escurecido o coração de Bowie para sempre. Podem assistir aqui a uma das canções dessa tournée «Reptile», dos Nine Inch Nails, ao vivo com David Bowie: https://www.youtube.com/watch?v=wJIJzmcc4MY. Ou ao concerto inteiro, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=j4sP1CTuIjs. Curiosamente, ou talvez não, dez anos mais tarde Trent Raznor cantaria esta mesma canção, «Reptile» com Peter Murphy: https://www.youtube.com/watch?v=gvClJOA5lqA
Esta breve viagem aos Nine Inch Nails e a David Bowie teve apenas como objectivo sublinhar a importância da escolha do quarto álbum dos Talking Heads como o melhor disco de sempre. Trent Raznor poderia ter escolhido um dos discos Bowie do período de Berlim, que ele tanto gosta, poe exemplo, mas escolheu «Remain in Light». Poderia ter escolhido algo mais obscuro, como a sua música ou aquela que usualmente ouve mais, mas escolheu um disco que é o oposto disso. O que tem este disco de tão especial afinal?»

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