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O vizinho

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (28 Julho 2021)

Fazemos os nossos amigos, fazemos os nossos inimigos, mas Deus faz o nosso vizinho.
G. K. Chesterton

«Não se julgue que o vizinho é uma tipologia moderna, no entanto. Não, amigos: há milhares de páginas da nossa literatura que tentam caracterizar ou defender o sujeito ali do lado ou do andar de baixo. Por mim bastaria uma reunião de condóminos, mas isso sou eu. Chesterton, que ali está em epígrafe, concordaria comigo, como aliás George Bernard Shaw que deixou esta lapidar verdade: «Se ofenderes o teu vizinho é melhor não o fazeres pela metade». O romântico Schiller lembra a categoria de “mau vizinho” para lembrar que nem o homem mais bondoso consegue a paz se isso não agradar ao dito cujo. O Código Civil está cheio de artigos que visam justamente regular e confirmar a existência desta espécie. Por outro lado também existem as apologias mas normalmente são feitas por homens de enorme estatura moral e bondade, como Martin Luther King Jr que confundem o amor ao vizinho com o amor ao próximo. Percebo mas a prática muitas vezes torna-se difícil.

Por mim, prefiro o anonimato discreto, o cumprimento cortês mas lacónico e o silêncio angustiante do elevador partilhado. Mais a mais agora, em que registo uma guerra surda com um desses cavalheiros acima descritos que me atormentam a paz e o sossego com queixas injustificadas. Como uma que ficará nos anais: na última passagem do ano, com duas pessoas a jantarem na sala, confinados que estávamos, ouviu-se gritos do andar de baixo e a tradicional vassourada no tecto, reclamando contra o barulho. Estava a televisão ligada, imagine-se. E eram 21 horas numa passagem de ano.»

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Daqui para ali

Valério Romão, no Hoje Macau (19 Março 2021)

«A ideia de mudar de casa, em Lisboa, sempre se me afigurou como um pesadelo. Além das complicações normais decorrentes de uma mudança – o transporte, o reequacionar de mobiliário e pertences, os livros que NUNCA cabem em lugar nenhum – há a questão não despicienda da inflação galopante no mercado de arrendamento. Uma pessoa faz um contrato e passados três meses apenas já se sente afortunada por estar a pagar um valor que no momento da assinatura contratual lhe parecia abusivo. A pandemia, se alguma coisa de bom teve, foi a devolver alguma sensatez – ainda que parcelar e naturalmente transitória – a um mercado cujo fervilhar hormonal prometia enviar todos os remediados para a orla mais distante da subúrbia.
Como se costuma dizer, há males que vêm para bem. Consegui encontrar uma casa – que uma amiga minha arrendava até no final do ano passado comprar uma casa bem longe de Lisboa, visto que não lhe apetecia continuar a pagar para estar num parque de diversões de usufruto alheio – muito perto daquela onde estava, a preços razoavelmente humanos e, para meu grande contentamento inesperado, com um pequeno mas glorioso terraço por onde o sol vagueia à tarde e de onde se vê Lisboa a namorar com o tejo. Uma casa em Lisboa a preços comportáveis é um achado; uma casa com terraço e vista devia ser passível de entrar no registo testamentário de bens legáveis a família ou amigos em registo de direito preferencial de opção.
Claro que nem tudo é maravilhoso. A casa é último andar, os tectos são baixos e há zonas esconsas onde já deixei algum escalpe. Termicamente, é muito mais agreste do que o meu primeiro andar antigo generosamente ensanduichado entre dois pisos. O problema maior, no entanto, é o facto de as divisórias entre andares serem tão finas que consigo ouvir tudo quanto a minha vizinha de baixo faz em casa. É uma espécie de janela indiscreta sobre a vida alheia na modalidade auditiva.»

P9P6EB Lisbon View
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