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Carta de separação a um lugar e mais

«Despeço-me então do lugar onde vivo, pronto que estou para rumar a outras geografias que são felizmente desejadas. Escrevo para me despedir de um lugar lindo, no coração da cidade que mais amo no mundo, com vista próxima para o azul-lisboa e tudo o que sob esse milagre existe. Mas sobretudo a separação aqui é do bairro feito gente, à escala humana. Escrevo para me despedir do senhor Manuel, do Carlos ou do épico mau humor do senhor Sebastião do café que eu frequentava e que ao recomendar o prato do dia não se abstinha de comentar: “Eu não gosto como eles fazem mas se quiser é bom…”. Separo-me do senhor Manuel, cozinhando sempre de boné e da sua mulher, a Dona Carmo, casal proprietário e resistente do restaurante onde tantas vezes fui o único cliente e onde, quando isso não acontecia, tive o prazer de discutir tudo e mais alguma coisa com os nativos do bairro. Ou seja: pertencer, pertencer-lhes. Despeço-me dos miúdos da escola municipal número 1, cujo chilrear me entrava pela janela e tantas vezes me deu forças para enfrentar os dias. Digo adeus a esta rua íngreme com frutarias, armazéns de revenda, floristas, cafés onde se joga à moeda, com quatro ou cinco nacionalidades por metro quadrado. Lisboa vive, sem folclore e assumindo sem problemas a sua raiz mestiça, esfarrapada mas digna, capaz de a qualquer momento sair de casa na sua mais deslumbrante roupa só porque sim.»

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (20 Janeiro 2021)

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