Redação, 24 jan 2021 (Lusa) – Num mundo que “pode ser uma abóbora”, em que se colhe o que se semeia e planta, o escritor timorense Luís Cardoso escreveu um novo romance que é “um longo poema”, inspirado numa mulher que falava com as montanhas.
“O plantador de abóboras (sonata para uma neblina)”, publicado pela “Abysmo”, é o sexto romance de Luís Cardoso que o recoloca em Timor-Leste depois do referendo que ditou a independência.
“Visitei Maubisse, um local belíssimo no meio de montanhas, e fui ver a antiga pousada que ainda estava degradada. Um sítio bonito para que, olhando para fora, pudéssemos também olhar para dentro”, contou à agência Lusa.
O escritor foi surpreendido por uma voz de mulher vinda do meio das ruínas, que cantarolava.
“Depois apareceu de corpo inteiro. Falou para as montanhas. Contou a sua história pessoal, do que lhe fizeram e das pessoas da sua família que foram mortas durante a ocupação. Foi um longo solilóquio que durou mais ou menos três horas. Apesar de nunca me ter dirigido a palavra e olhar para mim, eu era o destinatário daquilo que contava. Prometi a mim mesmo que um dia havia de escrever um romance que fosse um longo poema, inspirado na voz desta mulher”.
O romance chegou e ao longo de 180 páginas o seu autor escreve sobre um mundo que “pode ser como uma abóbora”.
“Colhemos o que semeamos e plantamos. Teremos sempre a abóbora que quisermos. Em Timor comemos a abóbora inteira. Os rebentos, as flores e os frutos. Quando estamos fartos de algo dizemos ‘Vou plantar abóboras!’. Fazer algo de útil. A abóbora é a parte visível do nosso esforço, daquilo que podemos semear e colher”, disse.
Mais uma vez, Timor é o cenário para as palavras escritas de Luís Cardoso. “A escrita é a minha forma de intervenção cívica como cidadão do meu país”, afirmou.
O escritor gostava que se incentivasse a leitura nas escolas, ao mesmo tempo que se aprende a escrever.
“Timor é um país recente. É o mais jovem dos países lusófonos. Está tudo em construção. Apesar de ter uma literatura oral bastante rica e antiga, a literatura escrita é bastante recente e não tem o peso que assume nos restantes países lusófonos”, referiu.
E recordou: “Quando escrevi o meu primeiro livro ‘Crónica de uma travessia’, fi-lo com vontade de contar uma história timorense. Como a crítica literária foi tão boa, encorajou-me a continuar. O livro foi traduzido para várias línguas, como inglês, alemão, italiano, holandês, francês e sueco.
Sobre o seu terceiro livro (“A última morte do coronel Santiago”), o jornal sueco Aftonbladet escreveu que Luís Cardoso é um dos grandes escritores da atualidade.
“Foi para mim motivo de orgulho e um grande incentivo para, juntamente com outros escritores do meu país, construir a literatura timorense”, afirmou.
Sobre as escolhas que tem feito ao longo do seu percurso, Luís Cardoso indicou que a sua língua materna é o tétum, tal como todo o seu imaginário.
“Só aprendi a falar e a escrever em língua portuguesa na escola primária. Quando decidi escrever romances podia escolher entre a língua portuguesa e o tétum. Escolhi a língua portuguesa. A escolha que faço é tentar trazer para a língua portuguesa todo o imaginário e sonoridade da língua tétum”.
Em relação a Timor-Leste, o mais jovem dos países lusófonos”, Luís Cardoso considera que, também por isso, “está tudo em construção”.
E recorre aos três D (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver) que “caracterizaram o processo revolucionário português saído do 25 de Abril” para explicar o que se passa em Timor.
“Creio que se cumpriu o D da descolonização. Foi um processo longo e tormentoso, mas hoje Timor-Leste é um país soberano. Creio que é um país democrático apesar das vulnerabilidades próprias de quem aprende a viver segundo regras diferentes do tempo da ocupação e da resistência. O petróleo permitiu o D do desenvolvimento de infraestruturas e aquisição de bens, mas acentuou cada vez mais as diferenças entre os ricos, cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais pobres”, sustentou.
Em tempos de pandemia, Luís Cardoso considera que esta trouxe o melhor e o pior”: “Pelo melhor, o sentimento de solidariedade e a união e partilha dos cientistas de todo o mundo nos esforços para o combate ao vírus”.
“Pelo pior, o acentuar das assimetrias existentes. Os mais desfavorecidos acabam por ser os mais atingidos”, disse, complementando: “Os níveis de desemprego aumentaram mais para os grupos com menores qualificações e baixos rendimentos, os que já viviam com dificuldades viram, em grande parte, a sua situação deteriorar-se ainda mais e há ainda a dualidade entre os países pobres e países ricos no acesso aos cuidados de saúde e no acesso aos bens essenciais que permitem um indivíduo viver com dignidade”.
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