Luís Carmelo no Hoje Macau (29 Julho 2021)
«O taxista continua no seu posto sentado ao volante. Olha vagamente para as portadas azuis da casa de saúde ou para o avarandado do café. Por vezes, vira a cabeça na direcção do parque infantil que continua deserto. O locutor da rádio garante que a mudança de dígito irá dar origem, dentro de dias, a um crash global. Este Millenium Bug, tal como o designa, já foi tratado por uma revista americana com o título “banho de sangue”. O medo não tem paisagem, é um buraco onde o teatro de sombras encena as peças mais improváveis com algum selo de verdade. O taxista viu crescer o seu próprio teatro ao rubro, a ponto de se imaginar a arder numa vala comum. O dia não promete bonança, pensou. Foi quando o telefone da praça tocou e o carro partiu para mais uma breve viagem.
O tempo dos clientes é um tempo proscrito. Voa como quem esvazia um balão que não pára de crescer. Até que o automóvel acaba por chamar a si as atenções e a estação de serviço interrompe todas as caminhadas. O taxista propõe-se encher o depósito como sempre, mas, desta vez, vê andar na sua direcção uma mulher de abas largas. Por trás das lentes grossas dos óculos que ostentam aros de chifre, os olhos desmaiam tons marinhos, à medida que a voz cresce naquele afã dos foguetes de arraial que falham na subida.
A mulher parece ter ressuscitado no momento em que encarou de frente o taxista que mantém ainda na mão o tubo negro por onde escorre o gasóleo. Jura que o conhece há muito tempo e repete-o com um ar ao mesmo tempo vitorioso e furioso. O taxista não tem sequer tempo para insistir que se deverá tratar de um engano. Indiferente, ela continua a jorrar palavras e lembra o clima tropical, as azáfamas debaixo do calor, aquilo era outro mundo, não era?
Lembro-me de o ver todas as manhãs com camisa branca a distribuir envelopes porta a porta. Por vezes parava e olhava para cima como se uma nuvem apenas feita para si lhe tivesse sido prometida. Nunca me passou pela cabeça investigar qual seria o seu emprego, mas cruzava-me sempre consigo na mesma estrada de terra batida, aquela terra barrenta cheia de sapos, lembra-se?
O taxista enche o depósito e continua com a longa mangueira na mão, incomodado por ter que interromper os seus habituais gestos mecânicos. À sua frente, a mulher devora as palavras e o relato torna-se de repente tão bizarro como a própria situação em que decorre. Poucas vezes o encontrava durante a tarde, mas havia aquele café entre os coqueiros do vale, isso mesmo, o Majestoso, onde o via por vezes com uma cerveja morna pela frente e o bloco-notas que ia enchendo entre um ou outro olhar na direcção da esplanada. Sempre o achei um solitário. Mas, minha senhora, eu nunca saí daqui da minha terra, está enganada com a pessoa, não sou eu certamente.»