Publicado em

Ela e a ausência

Luís Carmelo no Hoje Macau (4 Novembro 2021)

«Ainda não a consegues ver. O busto oitocentista encobre a zona dos baloiços. Só sabes que não há crianças a correr, nem tão-pouco aquele tremor que vive de urgências fictícias. A calma profunda passa por saber que aquilo que ocupa o tempo é privarmo-nos dele. Um certo alheamento, por outras palavras, que não esconde a floresta densa que somos e o amor que guardamos numa arca muito bem escondida.

Quando a viste de perfil e ao longe, com as pernas esticadas e o pescoço a reerguer-se, percebeste que ela nada te iria dizer. Excepção para a nulidade com que se revolvem as frases ou com que se revolve a terra à procura de uma pedra raríssima. Há sempre esperança, diz-se em certa filosofia.

Sentas-te no banco de pedra que tem vários azulejos partidos. Conta-los um a um, são trinta e dois. Consegues vê-la a partir daí e ela, depois de ter de novo levantado a cabeça, avistar-te-á, se for essa a sua vontade. Terá que fazer um pequeno esforço, inclinar ligeiramente o rosto para o lado direito. Se estiver em recolhimento, tratar-te-á como uma porção de nada. Mas fê-lo, fê-lo a custo e tu reparaste. Coisa de segundos. Não poderias suplicar-lhe que regressasse ao início, quer dizer, àquele ponto imaginário em que vocês os dois se teriam conhecido há muito tempo, de tal modo que agora poderiam estar prestes a reencontrar-se. Era falso, nunca se tinham deparado um com o outro. Era a primeira vez.

Sempre que ela movia a vasta cabeleira, distinguias as alças transparentes que lhe envolviam os ombros e logo insinuavas em desvario que era altura de se dirigirem um ao outro para festejar os anos que haviam injustamente defraudado. Estavas a passar-te, como é evidente. Os teus pensamentos eram extravagantes, mas, por outro lado, é verdade que nunca na vida tinhas sentido pensamentos tão estranhamente reais. Por isso te levantaste e dirigiste a tua pequena sombra até ao baloiço onde ela se recostava.

Foi nessa altura que surgiu a imensa nuvem esverdeada de pássaros. Seriam estorninhos. Eram milhares e milhares e cobriram tudo. O lajeado da fonte, o busto, as argilas do parque infantil abandonado, os bancos, o fontanário, os muretes do jardim, o fosso, o coreto, os ramos das árvores e os canteiros. Tinham bico avermelhado e as penas levemente escurecidas na extremidade das asas. Todo o espaço à vossa volta se converteu numa chiada contínua, num estrilo que bramia por dentro das argamassas mais espessas. Diz-se que os contentores do porto por vezes se abrem. Desta vez foi uma estranha clareira do céu que raiou de ponta a ponta.»

Ler mais

Share
Publicado em

A americana

Luís Carmelo no Hoje Macau (21 Setembro 2021)

«Restam-te os vinte metros quadrados do teu quarto. É a essa nave espacial a que pertences. Nela evaporas toda a cidade de Paris a bordo das cartas de Mário de Sá Carneiro. Nela bebes chá de frutas comprado numa loja de estrada em Badajoz. Nela traças a circum-navegação que te permite idolatrar seja quem for, ainda que não haja vivalma por quem possas morrer de desgosto.

Pensarás: A consciência de si própria nunca é actual. O que vem até mim – o que vejo e o que lembro – desaparece e esvai-se em cada instante. É como se o leme do barco existisse fora do barco e me lançasse a sós, metros e metros à frente da proa, no meio do oceano alteroso. Esse barco é afinal o curso da vida (repetes para ti próprio em surdina): um continente adiado, sempre meio perdido.

Adorarias apagar-te, fazer dos dias uma subtração. Sempre que sais de casa, fixas os olhos nas linhas imprecisas do asfalto. O teu corpo modificou-se e as vozes que nele e dele irradiam atropelam-se. Não imaginas sequer o que te falta, porque, muito provavelmente, viver é estar em falta. Quer olhes de baixo ou por cima para essa fonte rodeada de vasos, quer a olhes do interior onde cai a água ou de fora por onde agora passam os carros, é sempre a mesma fonte que tu observas. Mas nunca a abarcas na totalidade. A transcendência é apenas uma palavra que te segreda que tudo à tua volta está desconectado. Por isso sentes a vida como uma quebra e não sabes sequer como a exprimir com a tua boca. O medo não tem biologia, nem compleição. O medo é não poder convidar ninguém, não incitar a carne, não intimar o escuro.

Pensarás: Aquilo que nos espera é o oco profundo de um saguão, onde por vezes há pássaros escondidos que redemoinham a claridade. E assim foi.»

ler mais

Share
Publicado em

As escarpas

Luís Carmelo no Hoje Macau (30 Setembro 2021)

«Sobre a relva, evitando as roseiras que caem pelas traves de madeira, vês um homem e uma mulher. Estão ao longe, mas desarmam os gestos e as palavras com relativa facilidade. Dois seres físicos que recebem centelhas de luz, moléculas que lhes sulcam os ouvidos e as extremidades dos membros. Respondem espalhando círculos de ar que se entranham na paisagem, geometrias flutuantes que sobem lá de baixo até à varanda onde já te encostaste, de costas para os dois sofás. Ela relembra a roupa demasiadamente branca da cama naquele verão. Ele diz que há sentimentos que não são captados pela acção da consciência. Como que provêm de uma atmosfera longínqua e, de um momento para o outro, habitam-nos sem pedir qualquer licença.»

Share
Publicado em

A memória de Yokohama -III

Luís Carmelo no Hoje Macau (17 Setembro 2021)

«Os cientistas entraram de rompante no quarto. Envolveram silenciosamente a mulher e ouviram-na, enquanto passava as mãos pelo corpo inerte de Laurentino: “Meus senhores, a mais longa fase do projecto acabou neste momento. Como sabem, estamos face a uma experiência sem precedentes.”. A mulher abriu depois o peito de Laurentino, premindo na ondulação junto ao externo e continuou: “há três anos apenas, era difícil imaginar que esta mistura de circuitos, cabos, fibras conectoras, chips e sobretudo os quinhentos biliões de conexões interneuronais pudessem ser programados desta maneira”.

A mulher, afinal a directora do projecto há quase dois anos, falava com entusiasmo para os cientistas que enchiam o quarto do hotel da Fortaleza do Guincho e, num aceno rápido, acabou por abrir uma das válvulas do dorso e retirou o mais esperado dos artefactos, parecia uma caixa de fósforos com um cilindro em miniatura na parte inferior. E disse, com gravidade, a voz metálica e cheia de eco: “É a caixa azul do nosso robô!”. “Podemos finalmente ver as imagens que foram produzidas na mente do Laurentino?”, perguntou um dos assistentes.
“Claro”, concordou a mulher.»

Share
Publicado em

A Memória de Yokoama – II

Luís Carmelo no Hoje Macau (3 Setembro 2021)

«Laurentino lembrava-se de ter levado a mulher para dentro do átrio onde se erguia o antigo armazém da fundição. Laurentino lembrava-se de ter passado a correr com a mulher pelo cedro libanês que tinha ramos de bruxa e pela alfarrobeira imobilizada num repto da natureza. Laurentino lembrava-se de que tinham os dois passado pelas ruínas da vagoneta e do torno, para depois entrarem finalmente no armazém. O portão deslizou sobre carris negros e ouviu-se um som metálico e seco, um bramido pálido e oco. A mulher sentou-se no chão a um canto e tentou respirar fundo. Chorou depois compulsivamente e apenas dizia e repetia: “Eu sei coisas a mais. Eu sei coisas a mais. Eles vão matar-me. Ou uns ou outros. Ou uns ou os outros”.

Lembrava-se de ter saído até ao cais, enquanto a mulher dormia no interior de um vestíbulo abandonado da fundição como se estivesse calafetada e defendida pela escuridão. Laurentino lembrava-se de ver dois carros pretos a estacionarem ao pé do cais de onde saíram vários homens de cabelo rapado que telecomunicavam entre si. A banda tocava com vivacidade meteórica e os chapéus dos músicos pareciam tendas de linho expostas à poeira avermelhada do Negueve. A pequena multidão acercava-se das barracas de comes e bebes, dos cachorros de peluche, dos ursos de focinho branco, dos palhaços ruidosos, das tendas de tiro, das tabernas improvisadas e do homem-estátua que mais parecia um bobo convulsivo esboroado em aguarela ocre e azulada. E, nessa altura, mais por intuição do que por temor, Laurentino regressou subitamente à fundição atravessando um caminho secreto e remoto que conhecia do tempo das brincadeiras de criança.

Tudo havia sido preparado.

Lembrava-se, por fim, de ter colocado a mulher dentro de um tapete turco. Por cima do rolo improvisado, encheu o jipe de latas, restos de cadeiras, dossiês comidos pelo bicho, hastes de candeeiro, jarros, molduras de fotografia, zincogravuras, cortinados, roldanas, ferramentas carregadas de ácido e um ou outro varão de cobre. Vestiu um fato de macaco a cheirar a podre e saiu da aldeia em direcção às alturas.

Lembrava-se agora de circundar mais uma vez estas estradas muito íngremes. Levava o coração a ribombar, a tremer e revia assim a vertigem dos vales fendidos pela corrosão dos glaciares. Por trás, nada. Nem viatura, nem vivalma, nem sinal de perseguição. A fuga parecia perfeita. A mulher mal conseguia respirar e o tempo passava, lento e perigoso, como leme de veleiro no meio de súbita tempestade. Laurentino lembrava-se de ter andado quatro dias e quatro noites sem parar, a não ser para comprar gasóleo, água e bolachas de água e sal. E foi já num país que parecia Espanha, num descampado tipo aragonês, que Laurentino se lembra de ter livrado o carro de tanta porcaria.

A mulher, completamente tonta e inundada por ansiolíticos, sentou-se a seu lado e não disse água vai água vem durante várias horas.»

Share
Publicado em

A memória de Yokohama – I

Luís Carmelo no Hoje Macau (26 Agosto 2021)

«Lembrava-se de ver, há muitos anos, a imensa calote de betão a crescer entre penhascos e a massa húmida dos pinheiros. Parecia uma esfera de luz apoiada sobre ogivas metálicas com a magia daqueles arco-íris de trezentos e sessenta graus que se formam nos desfiladeiros da serra. À volta havia bandos de jovens vestidos de gabardina amarela, ramos de flor na mão, letras inflamadas e violas adormecidas nas mochilas que faziam coro grego de protesto face a este soberbo leviatã onde, um dia, os núcleos dos átomos haviam de ser cotejados. A imensa construção projectava-se para além da barragem e dava à região um raro vigor de alma material, um rosto porventura excessivo e uma panóplia variadíssima de habitações pré-fabricadas onde centenas de operários vindos de muito longe entravam e saíam do formigueiro da terra.

Lembrava-se da falésia de xisto escuro que descia a pique entre nascentes e juncos. Era um precipício criado por blocos de granito tão soltos quanto a velada gaguez da mulher que o avistara, há dias, no check-in do aeroporto. Tinha sobrancelhas grossas, o rosto esguio, cabelos encaracolados, os dedos finos e não deixava de evocar estas fragas desenhadas pelo abismo onde luziam os sinais mais simples dos deuses.

Lembrava-se de ouvir os sinos ao vento, eram campainhas que estavam presas aos ramos da indolente alfarrobeira e do espesso cedro libanês e que ressoavam ante a presença da lua nova e dos vendavais que redemoinhavam entre os muros do átrio onde havia argolas para burros, restos de um torno metálico coberto por uma camada de ferrugem esverdeada e uns tantos vasos esvaziados, embora pejados pela memória dos gerânios e das folhas enroscadas dos gladíolos.

Lembrava-se das águas escurecidas da barragem, desse verde vago de correntes brevíssimas onde o ofício dos remos e os braços abertos dos remadores limavam a sede do tempo. Visto do alto do precipício, era um movimento lento, vagaroso, bastante sincopado. Era como a miniatura de um limbo que progredia do paraíso esquecido até à sombria mansidão que rodeava o pequeno cais da aldeia. Aí, sobre o que sobrava do velho coreto, estava perfilada a banda de uniformes brancos como se fosse um insecto minúsculo cheio de tentáculos esponjosos e envolvido pela espessa poeira avermelhada do fundo da terra.»

Share
Publicado em

A Caixa dos Morcegos

Luís Carmelo, no Hoje Macau (12 Agosto 2021)

«Foi há quase trinta anos que passei as férias em Saint-Nazaire, na foz do Loire, e lembro-me de que me sentia agitado. O mais fidedigno dos cansaços pertence àquela família de ócios que se arma em complacente: a liberdade reduzida apenas a ser livre sem que os limites (que afinal a definem) se tornem claros. A bruma a recobrir o fim do dia. Ao entrar no autocarro, no início da viagem de regresso, relembrei o meu corpo em câmara lenta a percorrer as salas de aulas e eu sabia que, naquele momento, as mais diversas substâncias orgânicas, além dos iões e da água, passavam de célula para célula, rasgando fronteiras. Passavam através de pontes ditas citoplasmáticas.
 
E ela logo me encostou o pé debaixo da mesa e sorria bem menos corada do que há uma hora. O caminho para a velhice é um cruzeiro de gladiadores no meio de um oceano furioso e eu, pelo meu lado, sentia-me estranhamente tranquilo, quando comecei, a pouco e pouco, a tentar explicar: “No mundo das religiões do livro, da tradição hebraica à cristã e depois à islâmica, desde o segundo milénio a.C. que a vida é explicada em função de uma promessa que visa um mundo perfeito (redenção religiosa para uns, redenção ideológica para outros, conforme as épocas e os lugares). E sempre houve dois tipos de postura nestas culturas: uma postura de paciência (aguardar o cumprimento da promessa com a devida resignação) e uma postura de impaciência, baseada na exigência do cumprimento instantâneo (hoje, agora e aqui) do prometido mundo perfeito. A história está cheia deste tipo de movimentos. Radicalismos religiosos e ideológicos já no mundo moderno”. 
 
No dia em que abri a caixa de cartolina e larguei os morcegos no ar em pleno conselho científico – foi na altura um verdadeiro escândalo -, ela foi a única colega a abordar-me para me felicitar pelo boicote simbólico. O que não pôde compreender é que o meu gesto fora tudo menos simbólico. Eu já deitava a universidade pela boca e nem me dava conta disso. Estava a lembrar-me desta fase recente da minha vida, quando vi terra ao longe. 
 
De repente, o deck encheu-se de gente eufórica, fora de si: corpos de popelina a tornarem-se esguios numa voragem com as cores de El Greco, braços no ar sob a forma de mastros que se esfumavam numa farinha colorida, mastigável. Fiquei estático no meio desta humanidade de manequins e, ao mesmo tempo, a insinuar-me cada vez mais ao corpo dela que encostara, entretanto, as suas pernas às minhas. Respondi-lhe que sim: os radicalismos desejam que as visões prometidas aconteçam na realidade e no imediato. Terra à vista, terra a conquistar. E o mais curioso é que a tecnologia ofereceu tudo isso como presente ao mundo. Pelo menos, fê-lo através de simulações. Pergunto eu: para que interessam as religiões e as ideologias, se os aparelhos tecnológicos nos dão hoje instantaneamente (e com prazer imediato) o que mais desejamos? Não, não nos dão o paraíso, mas dão-nos a sensação de que tudo está ao nosso alcance. Deste modo, a velha promessa cumpre-se, ainda que não se cumpra o que ela prometia. »

Share
Publicado em

Trevo

Luís Carmelo no Hoje Macau (29 Julho 2021)

«O taxista continua no seu posto sentado ao volante. Olha vagamente para as portadas azuis da casa de saúde ou para o avarandado do café. Por vezes, vira a cabeça na direcção do parque infantil que continua deserto. O locutor da rádio garante que a mudança de dígito irá dar origem, dentro de dias, a um crash global. Este Millenium Bug, tal como o designa, já foi tratado por uma revista americana com o título “banho de sangue”. O medo não tem paisagem, é um buraco onde o teatro de sombras encena as peças mais improváveis com algum selo de verdade. O taxista viu crescer o seu próprio teatro ao rubro, a ponto de se imaginar a arder numa vala comum. O dia não promete bonança, pensou. Foi quando o telefone da praça tocou e o carro partiu para mais uma breve viagem.

O tempo dos clientes é um tempo proscrito. Voa como quem esvazia um balão que não pára de crescer. Até que o automóvel acaba por chamar a si as atenções e a estação de serviço interrompe todas as caminhadas. O taxista propõe-se encher o depósito como sempre, mas, desta vez, vê andar na sua direcção uma mulher de abas largas. Por trás das lentes grossas dos óculos que ostentam aros de chifre, os olhos desmaiam tons marinhos, à medida que a voz cresce naquele afã dos foguetes de arraial que falham na subida.

A mulher parece ter ressuscitado no momento em que encarou de frente o taxista que mantém ainda na mão o tubo negro por onde escorre o gasóleo. Jura que o conhece há muito tempo e repete-o com um ar ao mesmo tempo vitorioso e furioso. O taxista não tem sequer tempo para insistir que se deverá tratar de um engano. Indiferente, ela continua a jorrar palavras e lembra o clima tropical, as azáfamas debaixo do calor, aquilo era outro mundo, não era?

Lembro-me de o ver todas as manhãs com camisa branca a distribuir envelopes porta a porta. Por vezes parava e olhava para cima como se uma nuvem apenas feita para si lhe tivesse sido prometida. Nunca me passou pela cabeça investigar qual seria o seu emprego, mas cruzava-me sempre consigo na mesma estrada de terra batida, aquela terra barrenta cheia de sapos, lembra-se?

O taxista enche o depósito e continua com a longa mangueira na mão, incomodado por ter que interromper os seus habituais gestos mecânicos. À sua frente, a mulher devora as palavras e o relato torna-se de repente tão bizarro como a própria situação em que decorre. Poucas vezes o encontrava durante a tarde, mas havia aquele café entre os coqueiros do vale, isso mesmo, o Majestoso, onde o via por vezes com uma cerveja morna pela frente e o bloco-notas que ia enchendo entre um ou outro olhar na direcção da esplanada. Sempre o achei um solitário. Mas, minha senhora, eu nunca saí daqui da minha terra, está enganada com a pessoa, não sou eu certamente.»

Share
Publicado em

A fenda

Luís Carmelo no Hoje Macau (23 Julho 2021)

«O homem caminhava todos os dias para o fundo da antiga pedreira onde não havia ninguém. Fazia disso uma missão, uma prédica ou um sermão a sós que resgatava do eco em cadeia que advinha das profundidades, sempre que se movia com a presteza de um felino. Levava consigo vários cadernos e enchia as folhas com traços que reproduziam os vestígios da violência com que os blocos de mármore tinham sido atingidos durante anos. Poliedros incompletos, rectas quebradas, rectângulos fugidios, extractos lascados, cubos torcidos, triângulos dobrados, texturas fendidas, curvas desfeitas, linhas pendidas, pontos soltos e arestas arruinadas. No fundo de tudo, uma água verde, vagamente turquesa ao centro, definia a alma da imensa cúpula invertida.

Meses e meses de prospecção e de desenhos fizeram com que o homem percebesse que esta ferida gigante se movia. Era um tectonismo lento que emprestava ao vale da pedreira uma locomoção de carrossel, uma suave translação.

Quando chegava a casa, revia a evolução dos desenhos em certas secções e tornava-se claro que os traçados reflectiam um movimento circular. Numa mesma parede – que descia a mais de cem metros até à base, – os mesmos contornos ora se concentravam numa dada direcção, ora irradiavam, ora evidenciavam estranhos paralelismos. O homem tomou a sério estes avisos e agiu em conformidade como se fosse uma prece plagiada. Reuniu amigos há muito tempo afastados, dispersou pensamentos terríveis, mas manteve-se sempre distante do mundo como se ambos fossem rasgos paralelos. Até que, um dia, descobriu a fenda e se maravilhou.

Entrou pela estreita fenda com dificuldade, pois foi preciso entrar de lado com os membros afastados e a cabeça inclinada copiando a pena de pavão de Krishna. Sem que o pudesse prever, viu-se subitamente no fundo de um mar de água muito densa e foi preciso nadar até à superfície para poder voltar a respirar. Pelo meio desvendou um navio afundado, preso entre rochas, taludes e algas de cor azulada. Regressou para rever a embarcação e imediatamente descortinou o estranho habitáculo. Atravessou as portadas hidráulicas, penetrou na câmara pressurizada e sentiu o que seria a gravidade zero. Deslizou ainda pelo ar, flutuou como uma raia e na sua frente sonhou ter visto uma mulher louca, parecida com lady Macbeth no início do quinto acto quando não pára de repetir que “o inferno é sombrio”.»

cracked road concrete close up
Share
Publicado em

No limite da sombra

Luís Carmelo, no Hoje Macau (15 Julho 2021)

«Viver na errância é suplantar o espaço, encontrar locais onde interinamente parar para depois se deslocar a partir dessas âncoras, nas mais diversas direcções e em ritmo de vaivém. Ao fim de dois meses, o mapa descrito pelos passos da mulher é parecido a um fole que se vai avolumando. Desenha-o com o pé na terra batida do jardim como se fosse uma nuvem que tivesse sido assoprada, cada vez com mais fôlego, nas últimas horas do dia da criação do mundo. Perceber a geografia fora das rotinas que se tornam normais é perceber-se a si, na medida em que uma pessoa é também um fole secreto que se alarga, que se desmonta.

Um dia, a mulher voltou a rir do rosto assustado do motorista do eléctrico e, ainda que sem grande motivação, seguiu na direcção do fim da linha. Foram quilómetros de um rumo magnetizado, as passadas sem a audácia do costume, um trajecto que lhe aparecia de forma indiferente. A certa altura a linha do eléctrico 3 terminou, mas uma outra prolongou-a. A mulher perseguiu essa outra linha e ganhou subitamente um novo alento. Após uma hora e meia de andamento, a vegetação selvagem já cobria os carris e, num terreiro onde os flamingos experimentavam os refluxos da vazante, a força da natureza descarnava-os por completo. Foi aí que a mulher encontrou a rulote abandonada e, numa cartolina que substituía os vidros partidos de uma das janelas, pôde ver o desenho.

Era uma esfera com duas enormes saliências, uma para cima e outra para baixo. O hemisfério do norte, chamemos-lhe assim, aparecia dominado por uma montanha ladeada nas vertentes por dois rios, enquanto o inverso, chamemos-lhe o hemisfério do sul, era todo um vasto oceano com uma única ilha, de onde despontava uma outra montanha, precisamente nos antípodas da do hemisfério norte. Dentro desta podia observar-se um túnel escavado em forma de cone invertido e logo dividido por nove círculos descendentes, o último dos quais tocava no centro do mundo, a “morada do diabo”. A partir daí um segundo túnel ascendia por dentro da montanha do hemisfério do sul, através de outros nove círculos que iam crescendo cada vez com mais luminosidade. No topo, o céu era pintado com aguarela de “azul cristalino”. O desenho estava assinado, no cume dessa luz branca e celestial, com letras de criança. Traços largos e redondos que davam a ver o nome que era também o da mulher vagante: Beatriz.»

Share