Publicado em

A americana

Luís Carmelo no Hoje Macau (21 Setembro 2021)

«Restam-te os vinte metros quadrados do teu quarto. É a essa nave espacial a que pertences. Nela evaporas toda a cidade de Paris a bordo das cartas de Mário de Sá Carneiro. Nela bebes chá de frutas comprado numa loja de estrada em Badajoz. Nela traças a circum-navegação que te permite idolatrar seja quem for, ainda que não haja vivalma por quem possas morrer de desgosto.

Pensarás: A consciência de si própria nunca é actual. O que vem até mim – o que vejo e o que lembro – desaparece e esvai-se em cada instante. É como se o leme do barco existisse fora do barco e me lançasse a sós, metros e metros à frente da proa, no meio do oceano alteroso. Esse barco é afinal o curso da vida (repetes para ti próprio em surdina): um continente adiado, sempre meio perdido.

Adorarias apagar-te, fazer dos dias uma subtração. Sempre que sais de casa, fixas os olhos nas linhas imprecisas do asfalto. O teu corpo modificou-se e as vozes que nele e dele irradiam atropelam-se. Não imaginas sequer o que te falta, porque, muito provavelmente, viver é estar em falta. Quer olhes de baixo ou por cima para essa fonte rodeada de vasos, quer a olhes do interior onde cai a água ou de fora por onde agora passam os carros, é sempre a mesma fonte que tu observas. Mas nunca a abarcas na totalidade. A transcendência é apenas uma palavra que te segreda que tudo à tua volta está desconectado. Por isso sentes a vida como uma quebra e não sabes sequer como a exprimir com a tua boca. O medo não tem biologia, nem compleição. O medo é não poder convidar ninguém, não incitar a carne, não intimar o escuro.

Pensarás: Aquilo que nos espera é o oco profundo de um saguão, onde por vezes há pássaros escondidos que redemoinham a claridade. E assim foi.»

ler mais

Share