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Atoardas e velocidade

Luís Carmelo, no Hoje Macau (15 Abril 2021)

«Uma vida com uma única velocidade, com um único presente e com uma gramática pura seria a vida ideal. 
Paul Virilio foi um dos autores que mais acentuou o papel da velocidade no modo como edifica o nosso tempo, fazendo dela um misto de milagre e de parábola. No capítulo final de A velocidade da libertação, escreveu a seguinte nota sobre os impactos da energia cinética: “Desde há um quarto de século que a trajectografia substituiu a geografia. Há, a partir de agora, um trajeto independente de toda a localidade, mas sobretudo de toda a localização. Um trajecto inscrito apenas no tempo, um tempo astronómico que contamina progressivamente a multiplicidade de tempos locais” (…) “Da exocentração de um corpo em voo acima do solo, passamos de imediato à egocentração: o centro já não está situado no exterior, é ele próprio a sua referência, o seu eixo-motor”.
 Kundera também glosou o tema da velocidade no romance A Lentidão, fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que contrastam, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Ao invés, Virilio tornou a velocidade na linha de força de todo o seu pensamento, recentrando-se nos mais diversos impactos suscitados pelas acelerações da “omniurbe” global. A deformação (efeito da velocidade), de que as fake news são hoje em dia uma ínfima parte, é uma das metáforas mais interessante para significar a ruptura no espaço que tende, hoje em dia, a ser a ilusão de um tempo irrevogavelmente constituído por sucessivas instantaneidades.
Escrevi sobre o tema há um quarto de século, em Anjos e Meteoros, tentando provar que a instantaneidade não é, de modo nenhum, uma questão actual. Ela começou por ser, nas escatologias e nas ideologias, um campo reivindicativo que exigia o cumprimento imediato e sem esperas das grandes promessas (os fraticelli, no início do século XV, e os militantes soviéticos de Kronstadt, no início do século XX, exigiam, no fundo, precisamente o mesmo). Na actualidade tecnológica, esta aspiração de cumprimento instantâneo deixou de ser uma reivindicação dirigida a um além (teológico ou ideológico, tanto faz) para passar a ser, no essencial, uma forma de vida fria e afastada das grandes causas. Carregar no ‘on’ e ver realizado um desejo imediato sublima e ilude esse cumprimento associado a devires superiores. É a felicidade da redenção a descer do céu à terra de modo inapercebido e invisível. »

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Ai Love Veneza

Luís Carmelo, no Hoje Macau (9 Abril 2021)

«É a mais pura verdade que um romance apenas cabe no (limite) que escapa à experiência, depois de se ter subido as escadas a correr. O esforço é essencial. O que nele se representa foge às referências que seriam óbvias, mesmo se a cidade e as suas águas e canais forem vistas de cima, a partir das águas-furtadas, em noite de trovoada. O que se passa num romance são as latas de conserva de Warhol. Elas existem para que se possa amar aquilo que passaria despercebido. Elas, as personagens, não quantificam objectos. Antes duvidam, quando não existem sequer questões para pôr em causa. Antes questionam, sem que haja sequer respostas possíveis à vista. Antes se dispõem a responder, ainda que não existam perguntas que atravessem a encenação criada. Sim: um romance tem a sua música própria ambulante que voa sobre o mundo e o captura como uma tautologia (por vezes torna-se numa máquina surda que sabe serrar todas as dunas e que adora falar de lenha como se fosse um navio a aprender o futuro).»

TOPSHOT – People row during the masquerade parade on Grand Canal during Venice Carnival on February 12, 2017 in Venice. / AFP / Marco BERTORELLO (Photo credit should read MARCO BERTORELLO/AFP/Getty Images)
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