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Cortejo

Luís Carmelo no Hoje Macau (8 Junho 2021)

«A noite é de um temporal tão ameaçador que, não obstante, desperta em Erik a vontade de percorrer os dois mil quilómetros que o separam dessa mulher. A silhueta que na fachada da frente observa os passos do jovem holandês volta a sentar-se, mas sem nunca abandonar a tempestade que enche a escuridão do céu de lés a lés com flocos maiores do que telhas, centelhas esbranquiçadas que despregam a construção da noite. Sobre a mesa coloca um plástico azul cortado à medida e é nos limites desta capa – tão parecida com um oceano domesticado – que seguirá os percursos de Erik. O tempo que irá passar é o das formigas que reatam sempre o mesmo trajecto, sem que, pelo menos aparentemente, o questionem.

O mais grave de tudo é que, entre o muito que sabe, Erik está agora ciente de que ela o esqueceu. Também ele faz parte da longa lista de esquecimentos dessa mulher, chamemos-lhe Laura. O esquecimento é um potente glaciar que não escorre do mesmo modo ao longo do seu curso. Por isso Erik parte em viagem para tentar alterar a ordem das coisas. Surge agora numa praia a calcorrear a beira-mar em passo largo, cada pegada é um véu que se rompe ou o corpo ideal que avidamente procura. Junto à arriba que avança em desfiladeiro até ao pequeno cabo, vê desenhados na areia os contornos precisos de Laura: os cabelos gravados em espinha sobre os volteios da cintura e o vinco que define a boca virado para os pés que deslizam sobre a sua própria invisibilidade. Toda a imagem contradita a sua enorme presença.

Com a máquina de escrever assente no plástico azul, a silhueta hesita entre seguir a tempestade que ainda se abate sobre a janela ou tocar com os dedos nas assimetrias do teclado. Em ambos os planos, Erik cansa-se de procurar a sua amada e, numa das muitas noites da sua demorada estadia em Portugal, sonha com um sem número de figuras – iguais à que viu desenhadas na areia – a desembarcarem na praia. Entre elas distingue-se um rei com a cabeça cheia de grinaldas que se diz hermafrodita. Tal como Laura, esse excêntrico rei anda lentamente e de cabeça baixa como que à procura de algum sinal, primeiro na areia e depois já em terra firme. Talvez a atenção o atraia às flores amarelas do centauro das areias, aos goivos violetas das dunas ou apenas às orquídeas silvestres que são brancas como a neve do grande temporal.»

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A noiva

Luís Carmelo no Hoje Macau (1 Julho 2021)

«Quem os juntou foi uma poeta revoltada que tinha morrido há algumas décadas. Ao fim da tarde, escrevia no céu os traçados certos, ainda que fosse preciso compreender os sinais, domesticá-los, persegui-los tal como se assedia um javali ferido e foragido. E os quatro, o arqueólogo, a actriz, o louco e o fotógrafo, repetiam-lhe efusivamente os versos e passaram a sentar-se à mesma mesa e a beber dos mesmos jarros, logo que reentravam na cidade.
 
A amizade é uma superfície que se ergue debaixo do solo, embora cresça com relativa lentidão, movendo as pás e as mós invisíveis do seu próprio moinho, mas quando o pão se reparte, eis que cada um dos novos amigos pareceria ter encontrado a árvore que lhe estava destinada. Agora perambulavam juntos pela cidade, embora o louco, a quem nunca ninguém perguntara o nome, caminhasse sempre uns cinco metros atrás. O fotógrafo marcava o território com a leica ao passo que o arqueólogo sondava o purgatório, ou seja, a montanha invertida que replicaria em profundidade a elevação onde a urbe se tinha soerguido ao longo dos séculos. Os dois acreditavam que os sortilégios se agarram com a mão, enquanto a actriz decorava palavras de Strindberg e estava plenamente convencida de que a única coisa tangível que existia no cosmos era o seu corpo.
 
Muito cedo, raiava ainda a madrugada, houve um dia em que uma nuvem de pássaros se imobilizou por cima da catedral. E o louco – que viu o acontecido – disse que dentro daquela nuvem de penas estava o pensamento da poeta. O mais perfeito dos casulos aéreos. O arqueólogo, a actriz e o fotógrafo desestimaram a voz do homem, para quem as casas dos botões da sua gabardina eram versos por escrever. No entanto, todos desconheciam que a cidade tinha um segredo: adoraria viver a sós, sem qualquer habitante a habitá-la, a vivê-la, a desflorá-la. Terá sido sempre esse o seu desígnio e apenas o fotógrafo o intuiu, pois, nas fotografias que tirava, raramente aparecia o que antes havia focado. Registavam-se sempre grandes surpresas. As pessoas desapareciam. Talvez a cidade acolhesse agora melhor o pensamento da poeta – ainda que sob a estranha forma de uma nuvem – do que antes tolerara a sua presença física. 
 
Nessa mesma tarde regressaram à floresta e perderam-se uns dos outros. Cada um procurou a sua árvore ao longo de horas e horas. Horas que se fizeram dias e dias que se fizeram meses. O trabalho do fotógrafo foi de longe o mais lento. É sempre difícil encontrar as imagens certas. Bem mais do que determinar a posição exacta no palco, bem mais do que as sondagens que definem o ponto preciso de uma escavação e bem mais do que elevar o zénite da loucura. Mas depois de ter fotografado a maioria das árvores, em quatro delas a revelação deu a ver, não os troncos, as folhagens e a geometria das copas, mas os rostos dos quatro exploradores desta terra a que os antepassados chamavam sempre noiva.
 
Por terem descoberto as suas próprias árvores, os quatro regressaram à cidade para festejar.»

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I am a cowboy

Luís Carmelo no Hoje Macau (17 Junho 2021)

«Por vezes interrogo-me sobre o papel da violência que atravessa os westerns. Ela faz parte íntima do género, mas, apesar da sua predominância, nada a torna mais implacável do que a que grassa no quotidiano da nossa actual experiência da imagem.

A violência do western desenvolve-se num tipo de lógica de “gag” porque corresponde quase sempre a lances ficcionais que desarrumam uma certa expectativa de normalidade. Tudo nessa violência tende para o exagero, ou seja, para a hipérbole. Até o modo desabrido com que as vítimas dos sucessivos tiroteios voam ao caírem por terra espelha bem o espírito pioneiro do “wrestling”.

A violência que perpassa nos terminais de imagem do nosso tempo – que já interiorizámos e a que já nos habituámos – é dominada por um apelo muito mais cru, directo e cruel, pois tende a colar-se ao horizonte do que consideramos ser a normalidade (ver os rockets no médio-oriente ou ver uma série em que uma cidade inteira explode é, hoje e dia, digerido no sofá como se fosse quase a mesma coisa).

Existe uma segunda característica da violência dos westerns que a torna relativamente inocente. Trata-se do formato – ou do jogo – que a prefigura e cujo contexto distingue, de um lado, um domínio selvagem (onde se insere a paisagem por domesticar, assim como os índios autóctones que a habitam e a alma bravia dos vilões que a fustigam e exploram) e, do outro lado, um domínio da lei (onde se inserem os heróis solitários na representação de uma idealidade ou então os “sherifs” na representação de uma ideia de estado). Esta oposição de base é sempre vivida em pequenas localidades de desenho efémero, todas com seu o “saloon” enquanto ponto de encontro entre uma relativa estabilidade e a iminência dos forasteiros desordeiros que a virão pôr em causa.

Na maior parte das séries que hoje visionamos nos canais de “streaming” ou na tv clássica, a violência surge, ao invés, fora de qualquer contexto (ou de qualquer jogo narrativo pré-definido) e, por isso, dá à carne e ao sangue um tipo de verossimilhança muitíssimo distinta, porque tendencialmente hiper-real e dissociada de uma clara empatia de jogo.

A violência dos westerns tem muito que ver com a violência algo gratuita que se lê nas páginas da Ilíada e que, neste último caso, chega a cansar (tantos são os combates corpo a corpo que por vezes se diluem na recorrência retórica). O que une ambos os registos é a necessidade de vincar a origem duma história e o seu fulcro inevitavelmente heróico.»

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Uma proposta política

Luís Carmelo no Hoje Macau (10 Junho 2021)

«Aquilo que existe não se cinge, pois, apenas à sequência e à simultaneidade da presença (isto é: do que se apresenta diante de nós como algo concreto e presente). Essa é a ilusão de todas as culturas milenarmente baseadas na ideia de um dogma fixo ou de um livro – que tudo revelaria -, mas também na ideia de uma unidade primordial ou ainda na convicção estrita de finalidade, aliada ou à eficácia, ou então à metáfora do ser (porque todos os seres são mortais). Mas mesmo que nos circunscrevamos a um mundo que se vê a si mesmo como uma série – ou como um imenso vitral – de presenças materiais (onde se inclui o que pensamos), eis que a tentação de as modular com regras de fundo parece ser superior às nossas próprias forças. Caracterizar historicamente a natureza do mundo escatológico ou do mundo ideológico e de todos os seus mapas e itinerários restritivos é vermo-nos numa prisão ou, se se preferir, num aprisionamento total do sentido.
 
A pergunta que se coloca será, pois, a seguinte: como lidar com um mundo em que a presença e a ausência nos mereçam a mesma acuidade e em que a felicidade passe, também, por libertar o sentido (e a fruição da vida) de sistemas que tendem quase sempre a fechar-se? Não haverá respostas definitivas, mas poderão precisar-se alguns caminhos a ter em conta. Por exemplo: valorizar o que não sou, o que (já) não tenho e tudo aquilo de que – em geral – não se fala; ler o mundo como uma pluralidade dispersa que encontrará por si mesma as suas próprias posições e não como uma assunção imediata (aquilo que, logo num primeiro momento, parece dar sentido ao que vivemos); ter na imaginação – e na dimensão inter-maginativa – um aliado e uma autonomia que ampliem a realidade e que resistam a todas as tentativas de a definir e de a delimitar; ou ainda: desvalorizar a agenda, a repetição de slogans e de ideologemas, a provisoriedade da rede, o habitus e a propagação dos fluxos, os modos da moda, as linguagens-tipo, os dogmas, as cartilhas e as hipnoses socialmente dirigidas. 
 
Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma ampla proposta de resistência política no sentido mais nobre do termo. Trata-se, enfim, de uma proposta bem menos utópica do que se possa julgar. Aquilo que é político define-se pelo agir livre de todos numa comunidade (e a comunidade hoje é, também, inevitavelmente, o mundo e não apenas a geografia onde nos demoramos). Infelizmente a ‘coisa política’ do nosso dia-a-dia continua, na sua larguíssima maioria, a seguir o formato dicotómico que é próprio das trincheiras pré-definidas e em que o discurso de ambos os lados é previsível, ou seja, já está escrito e enunciado antes de ser accionado e dito (neste ponto, direitas e esquerdas rivalizam). É óbvio que este modelo esgota, cansa os alicerces da democracia e provoca um niilismo de quem facilmente desiste e se entrega ou à passividade das ‘palavras de ordem’ fáceis (que se repetem na efemeridade da agenda e nas linguagens miméticas em rede) ou ao discurso populista que simula um ‘estar contra tudo e contra nada’, mas que é perigosamente violento e vazio por excelência.»

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A fisonomia desaparecida

Luís Carmelo no Hoje Macau (3 Maio 2021)

«A mulher empurrava o mundo inteiro e, no entanto, o carro do bebé estava vazio. Para ela, este caminho diário era uma floresta proibida, quase fechada, e, apesar disso, o olhar do homem como que o lavrou em profundidade, ao ponto de ter pressentido que era ele quem a impelia em movimento. Foi deste modo que se sentiu tentada como antes nunca tinha acontecido.

Voltaram a olhar-se. O tempo. O homem e a mulher observam-se. Ainda o tempo.
Com dimensões diferentes as mãos do homem e da mulher são rigorosamente iguais, todas em forma de bandeira com os dedos juntos e sem flexão. O perfil e a forma do nariz dão a ver cópias quase precisas. Os olhares traçam em simetria uma brancura prestes a ser preenchida e repetem essa intenção inicial do mesmo modo no homem e na mulher.

Ela abre-se num estuário magnífico ao pau que o homem transforma em pedra. A afluência, para trás e para a frente ou levemente circular, permite ao infinito o seu sumo de possibilidades.

Ela pronuncia em voz baixa que os ombros são aquela parte que nos frutos se alarga das sépalas até à polpa. Ele responde que a bacia é o tratado que o corpo assina com a imagem secreta de um equador. Riem os dois. Ela volta a dizer que a cintura resolve em forma de golfo todas as peças da intimidade. Como se essa reentrância ditasse um ou outro verso em sânscrito. Ele abriu muito os olhos e ela imitou-o com a firmeza de uma flauta.

O homem e a mulher são iguais, nada os separa. A mesma ondulação nos braços, a mesma forma do queixo, a mesma fisionomia a arquear o fim do dia.»

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Conto de natal por ser Maio

Luís Carmelo no Hoje Macau (27 Maio 2021)

«Há lagos com cisnes e choupos à volta que são mulheres, mas só ela abandonou o filho num presépio natural. Lagos que levantam reflexos para esquecer a escuridão, lagos que inventam mapas volúveis para aprender a falar. De cada vez que lá passava, a mulher transformava-se numa ramagem e, vista de cima, caberia ao longo pescoço do cisne pensar o significado dessa ramagem.
Um menino igual a Jesus sai do saco e faz-se gente. Ele sabe que as grandes mansardas foram concebidas para os sótãos que se perfilam no topo das cidades. É num desses torreões que a mulher vive, já que o seu ofício passa por esquecer a terra e as suas armadorias desconhecidas. Só ela sabe quantas são as escritas, as quilhas e também os mastros enterrados no fundo da duração.
Ela ama Botticelli por causa dos cabelos de Vénus. Ama com a língua todas as outras mulheres. A luz é o defeito da grande noite que precede o nascimento, mesmo o de Vénus por ter escolhido a concha para desafiar a obscuridade. Jesus é um bebé abandonado que cisma com hortências a falar em voz baixa.
O bebé, depois rapaz e depois homem vê deus nas duas hortências que se debatem com aquele verde das pequenas vagas. Na realidade vê deus no seu próprio bosque, um deus selvagem que lhe levanta a cegueira na direcção de algumas das madressilvas menos acessíveis à mão.
Nos dias em que não regressa a casa, a mulher entrega-se a imersões profundas e prolongadas com breves aparições à superfície para respirar. E arrepende-se fortemente. Transforma-se então numa mariposa como se o movimento ondulatório dos golfinhos fosse o seu. Por vezes, quando coloca o pé num dos extremos desse percurso, grita. Um grito que dá a ouvir o mais claro batimento do mundo.»

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O Leme Secreto

Luís Carmelo, no Hoje Macau (13 Maio 2021)

«Seis décadas depois, conheceste em Amesterdão um artista polaco chamado Henryk Gajewsky que te convidou a participar num projecto intitulado “networking”. A ideia baseava-se numa gravação em cassete que rodava entre as moradas de vários artistas. Cada um gravava o que achava por bem – voz, leituras, sons de paisagens, misturas, ecos, palavras, narrativas curtas, devaneios, etc. – e enviava ao seguinte que constava da lista. O trajecto, sempre inacabado, viria depois a ser exposto com apoio de material visual (lembras-te de um violoncelo em que o arco tinha luz e de uma miscelânea final que faria lembrar um desengonçado concerto da Meredith Monk).
No caso do cadáver esquisito, o diagnóstico situava os males da modernidade (imposição de alto controlo a partir das máquinas, da violência, da velocidade e das linguagens técnicas) e virava-se contra eles ao jeito fugidio de todas as vanguardas da época. No caso do networking de Gajewsky, a acção enfatizava bem mais a ininterrupta interacção em rede e menos os efeitos da linguagem, entendidos como arma fosse contra o que fosse. O resultado era e foi, neste último caso, uma surpresa sem carga de manifesto, mas tão-só de júbilo estético. E isto apesar de Gajewsky ser, na altura, estávamos nos derradeiros anos da guerra fria, um exilado político.
Os dois casos aqui evocados ilustram dois modos de nomadismo que marcaram o século XX. Um primeiro instrumental e contestatário e um segundo essencialmente paródico (e capaz de assimilar e de truncar tudo o que as vanguardas haviam produzido até ao final dos anos setenta). A identidade do século XX como que avançou de múltiplas resistências a poderes muito claros (violentíssimos e verticais) para a era do paradoxo – que chega até aos dias de hoje – em que os poderes se diluem e avolumam, organizando-se também eles em rede.»

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Conjecturar vidas nos retratos

Luís Carmelo, no Hoje Macau (6 Maio 2021)

«Contar uma vida através dum retrato é uma caminhada entre a imagem e o poder da conjectura. Peirce reviu no conceito de abduction todo o imenso poder da conjectura. Para o autor, a conjectura é uma actividade humana da thirdness, o que significa que antecipa, prevê, constrói e projecta para o futuro a partir do que lhe é dado (e é, também, uma categoria que, como o autor sublinhou, está ligada ao “interpretante”, ou seja, encontra-se directamente conectada com o processar ilimitado das imagens que constituem, em cada instante, a encenação da consciência).
O poder de conjecturar não é apenas um poder de antecipação, ele é igualmente um poder de natureza poética, pois está ao seu alcance conceber o que antes nunca foi criado. Este lado criativo da poiesis assegura a projecção de figurações originais e modelares sem tradução nas palavras. Trata-se de um misto de intuição e de previsão de algo que parece dado ou até óbvio. A conjectura é, pois, uma arte alheia à sintaxe conceptual e, por isso mesmo, capaz de trabalhar com hipóteses mais idealizadas do que racionalizadas. »

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O design é uma poética do corpo

Luís Carmelo no Hoje Macau (29 Abril 2021)

«Entre outros exemplos poéticos, lembras-te da poltrona Showtime do catalão Jaime Hayón, uma peça com cordas vocais e de concepção maleável (alimentada pelo teor almofadado e pelo ritmo das pregas a partir de uma pele em polietileno rotomoldado) ou do Antibodi de Patrícia Orquila que recusava ser chaise longue ou divã para se afirmar como um esteio de lazer à base de alegorias florais (a lã e o cabedal davam corpo às pétalas que dominavam o assento reversível). O Antibodi foi e é um objecto de que Freud teria fugido a sete pés. Para lucubrar sobre a psicanálise, bastaria a sua presença deslumbrante. Também não resististe ao banco Spun de Thomas Heatherwick, uma recriação da espiral da vida que acumulava a função de um inesperado cadeirão (dirias tratar-se de uma metáfora das utopias que ainda hoje subsistem, muitíssimo discretas, nas letras pequenas do dia-a-dia).
Por fim, as laranjas que se querem tocadas como as estrelas. Corpo de casca e magma suave, as laranjas são personagens doces, lânguidas por natureza e foram baptizadas para fazer parte de uma gramática do júbilo. Tudo isto se respirava no candeeiro Flower-Pot-Orange de Verner Panton. A peça sugeria uma esfera, um aflorado de gomos e uma pressentida liquidez. Adivinhaste neste candeeiro um ponto de encontro e uma grelha de partida para poder pensar sem metas, sem objectivos, sem pressas. Uma laranja é um projecto de vida realmente. Tal como escreveu Ibn Sâra de Santarém (1043-1123), um poeta que traduziste do Árabe: “Com a sua beleza/ não permite aos olhos que vejam outra coisa:/ parece-me, às vezes, uma chama ardente/ e, outras vezes, o crepúsculo dourado”.
Sabias perfeitamente que o design somos nós próprios, revisitados. Percebeste a tempo que certas formas e acenos estéticos acasalam, na casa do design, com uma democracia quase intuitiva que todos partilhamos. É por isso que o design não é apenas uma espécie de revestimento dos objectos culturais. Ele é sobretudo a dança que percorre o modo com que nos olhamos ao espelho, numa sociedade em que o corpo já não é apenas um organismo. O corpo passou a projectar-se para muito longe de si mesmo. Dizes uma palavra em Singapura ao mesmo tempo que o ipad te dá ao dedo a simulação de uma viagem celeste. E, no entanto, continuas serenamente em Portugal sentado numa cadeira que não é apenas uma cadeira. O som da palavra, o dedo, a viagem e o objecto ambíguo onde te sentas são partes de um polvo lúdico que nada tem de orgânico. Trata-se antes de uma construção bem mais vasta de que fazes parte e em que interferes.»

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O tempo do desejo que também somos

Luís Carmelo, no Hoje Macau (22 Abril 2021)

«Perguntar o que é o desejo é quase o mesmo que perguntar o que pode uma pessoa ser. Avancemos devagar: o desejo não se coíbe ao corpo. O desejo precede e sucede o corpo, mas não o consuma. Pode saciá-lo e regressar logo ao que não o revela, pois o desejo jamais dá a perceber as figurações que o traduzem. O desejo é o móbil do gesto, mas não o gesto. O desejo passa entre as fissuras e as nódoas de todas as linguagens e só se pressente, tal como se prediz a atmosfera de um tornado. O desejo é uma segunda sombra que o corpo projecta no indefinido e, de modo nem sempre claro, em coisas e em seres particularmente definidos. Entender estes locais de definição é tentar conquistá-los. Conquistar aqui implica entrar na gravitação, por vezes hesitante, com que o desejo se dirige aos projectos e às metas em que se instalou. A hesitação é o posto de comando onde geralmente se cruzam desejos. Os espaços onde os humanos hesitam são vizinhos ou estão próximos das regiões onde o desejo incide em coisas e em seres definidos. »

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