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O design é uma poética do corpo

Luís Carmelo no Hoje Macau (29 Abril 2021)

«Entre outros exemplos poéticos, lembras-te da poltrona Showtime do catalão Jaime Hayón, uma peça com cordas vocais e de concepção maleável (alimentada pelo teor almofadado e pelo ritmo das pregas a partir de uma pele em polietileno rotomoldado) ou do Antibodi de Patrícia Orquila que recusava ser chaise longue ou divã para se afirmar como um esteio de lazer à base de alegorias florais (a lã e o cabedal davam corpo às pétalas que dominavam o assento reversível). O Antibodi foi e é um objecto de que Freud teria fugido a sete pés. Para lucubrar sobre a psicanálise, bastaria a sua presença deslumbrante. Também não resististe ao banco Spun de Thomas Heatherwick, uma recriação da espiral da vida que acumulava a função de um inesperado cadeirão (dirias tratar-se de uma metáfora das utopias que ainda hoje subsistem, muitíssimo discretas, nas letras pequenas do dia-a-dia).
Por fim, as laranjas que se querem tocadas como as estrelas. Corpo de casca e magma suave, as laranjas são personagens doces, lânguidas por natureza e foram baptizadas para fazer parte de uma gramática do júbilo. Tudo isto se respirava no candeeiro Flower-Pot-Orange de Verner Panton. A peça sugeria uma esfera, um aflorado de gomos e uma pressentida liquidez. Adivinhaste neste candeeiro um ponto de encontro e uma grelha de partida para poder pensar sem metas, sem objectivos, sem pressas. Uma laranja é um projecto de vida realmente. Tal como escreveu Ibn Sâra de Santarém (1043-1123), um poeta que traduziste do Árabe: “Com a sua beleza/ não permite aos olhos que vejam outra coisa:/ parece-me, às vezes, uma chama ardente/ e, outras vezes, o crepúsculo dourado”.
Sabias perfeitamente que o design somos nós próprios, revisitados. Percebeste a tempo que certas formas e acenos estéticos acasalam, na casa do design, com uma democracia quase intuitiva que todos partilhamos. É por isso que o design não é apenas uma espécie de revestimento dos objectos culturais. Ele é sobretudo a dança que percorre o modo com que nos olhamos ao espelho, numa sociedade em que o corpo já não é apenas um organismo. O corpo passou a projectar-se para muito longe de si mesmo. Dizes uma palavra em Singapura ao mesmo tempo que o ipad te dá ao dedo a simulação de uma viagem celeste. E, no entanto, continuas serenamente em Portugal sentado numa cadeira que não é apenas uma cadeira. O som da palavra, o dedo, a viagem e o objecto ambíguo onde te sentas são partes de um polvo lúdico que nada tem de orgânico. Trata-se antes de uma construção bem mais vasta de que fazes parte e em que interferes.»

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