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A Caixa dos Morcegos

Luís Carmelo, no Hoje Macau (12 Agosto 2021)

«Foi há quase trinta anos que passei as férias em Saint-Nazaire, na foz do Loire, e lembro-me de que me sentia agitado. O mais fidedigno dos cansaços pertence àquela família de ócios que se arma em complacente: a liberdade reduzida apenas a ser livre sem que os limites (que afinal a definem) se tornem claros. A bruma a recobrir o fim do dia. Ao entrar no autocarro, no início da viagem de regresso, relembrei o meu corpo em câmara lenta a percorrer as salas de aulas e eu sabia que, naquele momento, as mais diversas substâncias orgânicas, além dos iões e da água, passavam de célula para célula, rasgando fronteiras. Passavam através de pontes ditas citoplasmáticas.
 
E ela logo me encostou o pé debaixo da mesa e sorria bem menos corada do que há uma hora. O caminho para a velhice é um cruzeiro de gladiadores no meio de um oceano furioso e eu, pelo meu lado, sentia-me estranhamente tranquilo, quando comecei, a pouco e pouco, a tentar explicar: “No mundo das religiões do livro, da tradição hebraica à cristã e depois à islâmica, desde o segundo milénio a.C. que a vida é explicada em função de uma promessa que visa um mundo perfeito (redenção religiosa para uns, redenção ideológica para outros, conforme as épocas e os lugares). E sempre houve dois tipos de postura nestas culturas: uma postura de paciência (aguardar o cumprimento da promessa com a devida resignação) e uma postura de impaciência, baseada na exigência do cumprimento instantâneo (hoje, agora e aqui) do prometido mundo perfeito. A história está cheia deste tipo de movimentos. Radicalismos religiosos e ideológicos já no mundo moderno”. 
 
No dia em que abri a caixa de cartolina e larguei os morcegos no ar em pleno conselho científico – foi na altura um verdadeiro escândalo -, ela foi a única colega a abordar-me para me felicitar pelo boicote simbólico. O que não pôde compreender é que o meu gesto fora tudo menos simbólico. Eu já deitava a universidade pela boca e nem me dava conta disso. Estava a lembrar-me desta fase recente da minha vida, quando vi terra ao longe. 
 
De repente, o deck encheu-se de gente eufórica, fora de si: corpos de popelina a tornarem-se esguios numa voragem com as cores de El Greco, braços no ar sob a forma de mastros que se esfumavam numa farinha colorida, mastigável. Fiquei estático no meio desta humanidade de manequins e, ao mesmo tempo, a insinuar-me cada vez mais ao corpo dela que encostara, entretanto, as suas pernas às minhas. Respondi-lhe que sim: os radicalismos desejam que as visões prometidas aconteçam na realidade e no imediato. Terra à vista, terra a conquistar. E o mais curioso é que a tecnologia ofereceu tudo isso como presente ao mundo. Pelo menos, fê-lo através de simulações. Pergunto eu: para que interessam as religiões e as ideologias, se os aparelhos tecnológicos nos dão hoje instantaneamente (e com prazer imediato) o que mais desejamos? Não, não nos dão o paraíso, mas dão-nos a sensação de que tudo está ao nosso alcance. Deste modo, a velha promessa cumpre-se, ainda que não se cumpra o que ela prometia. »

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