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Um sol inesperado

Valério Romão, no Hoje Macau (19 Fevereiro 2021)

«Felizmente, temos conseguido controlar (com muitos sacrifícios a vários níveis) a taxa de mortalidade – com algumas excepções muito pouco felizes, como foi o caso deste Janeiro. Mas subsiste a sensação de que a morte – apesar de todas as medidas, apesar das benfazejas vacinas – está à espreita, à espera de um descuido, de uma distracção de principiante, do momento em que ousamos vir à tona reclamar o quinhão de oxigénio a que estávamos habituados. De um ponto de vista objectivo – eu de fora, com os óculos da ciência disponível postos, a olhar para mim próprio – sei que não faço parte de um grupo de risco acrescido. Em princípio, se o bicho resolver fazer de mim turismo, sobreviverei. Mas se em Março do ano passado, quando o confinamento era sinónimo de incerteza e de pavor, eu conhecia apenas duas pessoas que tinham adoecido com o vírus – e que nem sequer moravam em Portugal (olá Ana, olá Carlos, sintam-se bem-vindos a este texto) – e que dele recuperam sem qualquer mazela subsequente, neste momento conheço muito mais gente que adoeceu – e recuperou – e também gente que morreu.
A morte em jeito de estatística no telejornal da noite, vociferada pelo apresentador de serviço como se de um anúncio bíblico se tratasse, não me tira propriamente o sono; há muito tempo que a minha relação com a televisão e os seus mecanismos de predação afectiva é praticamente inexistente. Evito-a como quem se escusa à companhia de uma pessoa desonesta. Mas não há como evitar o pesar por aqueles de quem sabíamos os nomes, ou aqueles que são os pais, os tios ou os avós das pessoas da nossa congregação de vivências. São esses que dão à cara à estatística anónima que alimenta os noticiários. Lá fora cheira à morte.
E, de repente, e por mais que se insista em abandonar a vida à soleira da porta enquanto ela não resolver se portar bem, a vida, como as ervas que rebentam na fenda de uma rocha num assomo de tenacidade, a vida acontece. Sem avisos, sem reservas, sem máscaras: ela segue-nos para onde quer que vamos.»

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