João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (24 Fevereiro 2021)
«Ainda é cedo para alinhar perdas e ganhos, se os houve, no livro-desrazão desta pandemia. Na roubalheira generalizada de vidas e do viver roubou-me a possibilidade de acompanhar em documentário o fechar das portas da Campos Trindade. Conservarei muitas imagens em lugares e modos que ainda desconheço, no velho sentido de “nascer com”, o que ali se deu vezes sem conta no acanhado dos últimos anos. Ia chamar-se «44, Rua do Alecrim», celebrando a redondez dos quarenta e quatros anos de porta aberta. Apesar de ter sido por um triz, o filme não acontecerá, mas ninguém nos tira, a mim, ao Nuno [Miguel Guedes] e ao protagonista, Bernardo [Trindade], as longuíssimas conversas de namoro em torno do amor, que é como quem diz amizade. E dos fios ténues e consistentes com que se entretecem as famílias. Na apresentação que fizemos para convocar parcerias e boas-vontades, escrevíamos: «a pergunta que nos interessa, entre tantas possíveis, é esta: os livros são seres vivos? Existe quem ache que sim e faça disso prática e louvor. A história que se quer contar é um desses exemplos, onde o valor é mais importante do que o custo; onde o destino é de facto determinado mas por uma única lógica, avessa a mercantilismo ou ignorância. E essa lógica é a do coração misturado com o saber, combinação única e rara. Mas praticada. E com provas em papel e palavra.» Estou certo que arranjaremos maneira mais portátil de voltar ao assunto. É que «a história que queremos contar fala de vida. Do que fomos, do que somos e com sorte do que poderemos ser. E é por isso que a resposta à pergunta colocada é fácil: sim, os livros são seres vivos.»
Voltámos pela última vez às salas vazias, agora enormes. Um destes dias a fachada completa ̶ nome, porta, montra, painel de azulejos ̶ será abrigada, com ironia, por mãos amantes de coleccionadores. Voltámos e forçámos a alegria de mudar de pele, que «o lugar dos livros não se esvai enquanto tiver por mapa um livreiro»:
uma livraria tem por objecto o roubo dos raios e relâmpagos
a sala nua que nos despia não alcança nem sombra nem brilho
as palavras ecoaram dessabendo onde pousar no que iam dizendo
saudades de quando no desarrumo os sentidos se desmultiplicavam
os amadores que costumavam reconhecer páginas e lugares
como em casa ou no corpo
desconheciam agora onde pôr as mãos
sem arriscar largar os olhares uns dos outros
derivavam à tona das areias movediças
a tornar quadrados os metros
medos
daqui só se sai vivo reaprendendo a deslizar sobre as páginas
lágrimas»