O Cadáver Esquisito deadinbeirut (Briefing 15 Novembro 2021)
Notas de Autor, de Afonso Cruz (TSF 12 Novembro 2021)
Seis escritores, um ilustrador e um mestre cervejeiro entram num bar… (Marketeer 12 Novembro 2021)
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (27 Outubro 2021)
A Quinzena [Jean Moulin] fecha com estrondo e dois lançamentos. O do livro-relâmpago, «Jean Moulin Lisboa 1941», onde se acolheu o essencial dos textos e dos vestígios da sua passagem por Lisboa e por nós: o discurso de Malraux, dele fazendo rosto da França, o testemunho literário e (talvez) vivido de Jorge Reis, um belíssimo conto do Fernando [Sobral] a esticar todas as possibilidades ao limite da paisagem, o relatório com as contas da Resistência partida, e muito mais. Umas noitadas valentes, a fazer lembrar outros combates de urgência, corremos atrás do Jorge [Silva] que andou, tal maestro tresloucado, a pôr tudo e todos no andamento certo. Entregámos as 216 páginas a 4/4 cores ao Carlos Vintém na segunda-feira e ao fim do dia seguinte tínhamos 50 exemplares brilhando (demais) nas mãos. (Estes milagres ainda vão acabar com as tuas dúvidas acerca da impressão digital, cota…). Faltou o terno e atento texto do Ferreira Fernandes, que fez a propósito para «A Mensagem» (https://amensagem.pt/2021/10/05/jean-moulin-lisboa-comemoracoes/), mas nem a mais radical tecnologia resolveu o tempo: como incluir texto que ainda não foi escrito?
E depois o outro, aquele para as supostas crianças, quem sabe jovens, inevitáveis adultos, «Jean Moulin, a sombra não apaga a cor» (ed. APCC), traçado a meias com o Tiago [Albuquerque], que acabou por não conseguir estar. Aliás, senti-lhe a falta durante o processo inteiro de criação, que me interessa mais partilhado, dividido, rasgado. O combate entre o possível e o impossível nem sempre se perde, nem sempre se ganha.
O que aconteceu por estes lados, explodindo a partir da Casa da Imprensa, fez-nos acreditar. Descontemos os encontros e reencontros, que os houve e abraçados, além de gestos simples e comoventes, presenças regulares, disponibilidades que reverberam. Aconteceram filmes de sala cheia até altas horas, aqui no Ideal. Centenas de gente a perder-se nas exposições. Debates, acesos, e não apenas entre historiadores de renome. E depois a pedra, momento singelo em dia de comemorar a República, com todos os muitos oradores ironicamente disso se esquecendo. Está no chão do miradouro, a dizer com um olhar penetrante em granito negro do Zimbabué sobre lioz branco que as raízes podem ser horizonte. Afinal, como bem notou FF, se foi aqui que Moulin ganhou a luz, andámos, entre fogo e rasgo, a celebrar Lisboa. Uma certa Lisboa.
Pedro Miguel Silva entrevista João Paulo Cotrim a propósito do projecto Cadáver Esquisito (Deus me Livro, 20 Outubro 2021)
Que cadáver esquisito é este que a Abysmo desenterrou, num caixão que vinha carregado de paletes de cerveja?
Desenterrámo-lo do nada. O mecanismo do Cadáver Esquisito é uma espécie de maratona, feita na hora, no sentido de ser a conjugação de vários sabores, em várias áreas, que não apenas a literária. Temos o mestre cervejeiro, o João Brazão, que é também um grande leitor, e que de repente descobriu em autores mais ou menos relacionados com a Abysmo a mesma paixão pela cerveja. Uma bebida que tem um universo suficientemente rico, comparável ao do vinho, e que normalmente desconhecemos, falando dela como uma espécie de refresco que se bebe muito fresco e no Verão. Só mais recentemente começámos a ter uma noção clara da sua riqueza cultural.
Que relação existe entre estes seis contistas e o mágico líquido amarelo?
O Afonso Cruz tem sido o grande embaixador da cerveja, sobretudo da artesanal, e até já se dedicou à sua produção. O Luís Carmelo praticamente só bebe cerveja, no contexto da Mymosa e da Abysmo está sempre de mini na mão. O Paulo José Miranda, um excelente avançado centro que fui contratar ao Brasil, foi-me buscar ao aeroporto e deu-me um curso intensivo e acelerado sobre a riqueza das cervejas de Curitiba. Curitiba é a capital da cerveja no Brasil, com uma universidade da cerveja, uma série de IPAs e muita experiência à volta da cerveja. O Luís Afonso teve, há cerca de vinte anos, a Vemos, Ouvimos e Lemos, uma livraria independente fantástica, muito competente que, para lá de toda a oferta literária, tinha um barzinho com um apreciável panorama de cervejas, que naquela época era impossível encontrar em Lisboa. Tinhas em Serpa e tudo por causa do gosto e do culto do Luís pela cerveja. O Valério (Romão) é outros dos casos que, embora não recusando o vinho – que é também o meu caso -, é também adepto da cerveja, em parte por causa da influência do Paulo Miranda e da muita reflexão, conversa e paleio que tivemos sobre a cerveja. Faria sentido que este primeiro volume reunisse estes autores e não outros.
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (29 Setembro 2021)
Conhecia este texto, que dança nas profundezas, da Inês [Fonseca Santos], fruto da deliciosa prática da partilha – toma que está maduro, ajuda-me a descascá-lo. Desconhecia o quanto de solar dele extraiu o Mantraste – olha como o cubismo nos permite fazer do fragmento corpo inteiro. E depois ao ser impresso o raio do texto ganha outros tons – será rosto maquilhado? «António Variações – Fora de tom» (ed. Pato Lógico/ Imprensa Nacional), esguio de formas, como todos os da colecção Grandes Vidas Portuguesas, está cantarolando pelas estantes, nas minhas mãos.
Os bem-pensantes, que os há sob cada pedra em todos os quadrantes, insistem no erro de que os livros de putos apenas a eles se destinam e dispensam leituras aos entretanto crescidos. Neste pequeno volume, a Inês e o Bruno dizem tanto sobre a vida de cada um, as vidas dos outros, o peso das palavras, o modo como elas nos abrem ou fecham os dias, falam do que somos se o soubermos ser! Sem condescendências, sem medo de se apaixonar pelo tema, brincando invariavelmente às construções, das caras e dos versos. «Não é em linha reta, o humano», mas há geometrias ocultas, linhas de terra. A fortíssima face do António Variações atravessa o livro por completo, faz-se paisagem e cadeira, dança e ternura, microfone e enxada. Perto, tão perto, passeiam-se as mãos, enormes. Notável a subtileza com que o Bruno insere elementos de uma ruralidade identitária que só o Variações soube tornar cosmopolita – raiz e antena. As convenções, se podem ser casa, tendem a tornar-se prisão. António Variações não deixou ainda de rasgar cantando a liberdade.
Andamos nisto, a disparar em todas as direcções assoberbados com estampas e retratos, talvez auto, à velocidade do absurdo. A Festa da Ilustração explode lá para o início do outonal mês e o José Teófilo [Duarte], à queima-roupa, sem apelo nem agravo, pede-me reflexão escrita em torno do labor de misturas da Marta [Madureira]. Travo a fundo as urgências e fecho-me para vaguear nos seus rostos, lado visível de dilectas geometrias: «A colagem tem sido o seu território. O corpo a sua matéria, o seu assunto, a borracha ilimitada com que estica as histórias, ainda que de outros. E nessa estrutura de tronco e membros, a peça principal tornou-se a cabeça. Ou melhor: o rosto.» Amo mãos, a sua dança na atmosfera, a deliciosa relação que estabelecem com a face respectiva. Do gesto nascem caras (algures na página, exemplo virtuoso). Nisto, a colagem a imitar estes dias, feitos disto e aquilo, sobras e princípios sobre uma qualquer folha suja (de calendário). «A Marta desde sempre integrou na sua linguagem fragmentos do mundo, que deixam de lhe pertencer mal pousam sobre a página tornando-se cor, textura, sinal. Uma mola reproduzida tal e qual não prende nada, do mesmo modo que as esferas metálicas se podem tornar olhos de bicho. E até foi fazendo mais, acrescentando dimensões ao plano, ou vestindo de penas e tecidos certos corpos. Um pouco mais de vida em naturezas mortas.»
Na escala evolutiva, um livro em pdf ou afim, por útil e facilitador que seja, não consegue ainda andar como um livro. O texto, longe dos nossos olhos, combina-se com as imagens, de modos que só a geometria descritiva explicará, e explode em objecto de capa e espada, perdão, página. Dá-se, então, o mistério. Doravante não será mais meu, ou do Tiago [Albuquerque], que o enriqueceu com visões, este «Jean Moulin – A sombra não apaga a cor».
Serão as vidas a terra de onde brotam as histórias? Basta discorrer um percurso para prender leitores a ponto de ignorarem a vida? Esta biografia aventurosa e por um triz banal deu filmes e romances, mas deu sobretudo um rosto, aqui tintado a negro e sombreado de azul. Ecoa ininterrupta a bela frase de Malraux, à beira do Panteão, com o que este contém de abysmo: «Hoje, juventude, pudesses tu invocar este homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele foi o rosto da França.»
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (15 Setembro 2021)
Vão passeando os numerosos cães e os comentários, uma ou outra palavra de incentivo, mas também piropos grosseiros e passagens ao largo para evitar encontros de maus fígados (as máscaras poupam alguns da má cara).
Quase se perdeu o hábito de saudar quem está ali de pé ao serviço, de súbito transparente. Também se atiram dúvidas que tamborilam com o pó ininterrupto sobre as capas da livralhada: conselhos de leitura, acerca de um autor, de planos, mas a pergunta campeã, de longe, tem a ver com preços baixos e ainda mais descontos, com a adesão à mística Hora H. Tantos anos a inundar mercados com ideias acocorados dá nisto: saldos como modo de vida.
Não páram de crescer, assim eucaliptos, as editoras-taxímetro: pague que nós publicamos, resmas de restolho, sem fogo, mas esperando arder, com autores impantes e abandonados, uns em afogadilho, mas outros em celebração de selfiem-família. O negócio das identidades terá sempre por onde crescer: quem serei eu sem autorretrato ao instante, sem assinatura, sem opinião firme e hirta.
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (1 Setembro 2021)
Ei-la que chega, impante, a Feira do Livro. Muito por culpa do comunicado da APEL, que nos atribui estatuto de novedio, o Público (https://www.publico.pt/2021/08/26/culturaipsilon/noticia/feira-prova-vida-editoras-1975265) abre a sua peça connosco e dá azo a um sem número de mensagens, sinceras e fingidas e mais um leque de matizes onde se exercita o humano. Que importância ganham estes detalhes, o de ser a primeira vez que erguemos barraca a solo em evento que nos desgosta e de um jornal apontar lanternas a isso? Pouca. As autoridades alegram-se com a dimensão, atiram números, muitos números, sempre a somar, enchendo bocas e cabeças com o cultural, mas é de comércio que se trata. Vem daí mal ao mundo, que se venda livros? Nem por isso, mas quando toda a estratégia assenta no preço, nos descontos, nos saldos, nos livros do dia, na Hora H, esse convite à especulação, e outras invenções do demónio, acabamos por deixar claro que o interesse não será exactamente a promoção da leitura.
Atraímos passeantes, muitos, muitos, com pipocas e hamburguesas e saladas saudáveis e cerveja artesanal em versão bem-pensante de feira popular. Onde se assinala aqui o movimento emergente das novíssimas pequenas ou nem tanto editoras, nadas e criadas por estes dias de fim do mundo? Por que raio continuam a chamar espaço dos pequenos editores a uma tenda de saldos? Pormenores, de novo, ainda que simbólicos. E nem nos devíamos queixar, pois somos associado silencioso e nada participante, mas não deixamos de reflectir. Enfim, entrámos aos 10 anos de idade, no comunicado e na Feira, graças à crise que baixou a níveis razoáveis o alugar do pavilhão que forrámos com títulos desafiantes.
Diz o fraque e a cartola, façamos montra, cais de vidro, ponto de encontro, partidas e chegadas sem horários, livros-mala-de-viagem, livros-abrigo, livros-navio. Soubera eu como, filmava cada reacção: ao acontecer dos volumes por junto, tantos e tão poucos, as colecções que só se adivinhavam, a riqueza das capas, as que parecem tão antigas quanto as vanguardas, dos ziguezagues e piscadelas de olho ao leitor, sem o estupidificar, convites a entrar no jogo, com «buracos», sem capa, sem letra alguma a não ser na lombada, cores e formatos, volumes irmanados por folha, imagens de um lado e do outro poemas, os que se desdobram, recolhidos em caixa. Leitores das muitas identidades, é entrar, entrar, que temos ainda temas ocultos na voragem, o agreste e o difícil, o melancólico e o resto, imenso e movediço.
Uma década a dizer nas entrelinhas: bons títulos – assim diz o cartão instagramático. Não está acontecendo, mas esta celebração desejava-se menos prova de vida, mais atirada para o renascer do que o soprar das cinzas, mais árvore e, portanto, vergôntea. Quem sabe, se com as chuvas.»
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (18 Agosto 2021)
«Paredes de Coura, quarta, 10 Agosto
Calhou que a primeira saída de Lisboa – e quem diz Lisboa, diz casa – em mais de um ano tenha sido a esta terra no coração do Norte (E do palavrão: pontuar cada frase com um sonoro caralho ajuda a mudar a cor de algumas faces e o alinhamento dos pensamentos de risco ao meio.) Integrado em Ciclo de Polinização, o concerto que fechou o dia da terra esteve na boca e gesto dos «No Precipício Era o Verbo». Não sei se alguma vez se aplicará à polinização, mas estou em crer que exactamente ali, no límpido lugar inicial e a pretexto do «Realizar: Poesia», se fechou um ciclo. O que começou por ser dança entre o contrabaixo do Carlos [Barretto] e as palavras, sobretudo do Zé [Anjos], mas também do António [de Castro Caeiro] e do André [Gago], foi ganhando complexidades, convocou as interpretações do André [da Loba] e tornou-se objecto-livro com cd, que recolhe o mistério de um redondo conceito. Na viagem pusemos a rodar também o disco, que há muito não ouvia. E surpreendi-me com a maturidade sobrante, na evocação de várias infâncias e fragilidades, no prenúncio de dias difíceis, de múltiplas doenças correndo a urbe.
Apraz-me bastante este acompanhamento dos ensaios, a mecânica dos bastidores, a tentativa e erro, a fragilidade de cada recomeço, um estar por dentro, mas perto da porta, talvez à janela. Desta matéria intermitente se faz a carne do editor: está e não está. Sempre na dúvida se traz com ele algum pólen. (Algures na página, foto da Graça [Ezequiel] que acende e apaga as luzes dos poscénios).
Apesar do sólido espectáculo no coração da cidade-campo que é o coração do Norte, ficou claro que está na altura de semear e logo colher novo repertório, fazendo evoluir o conceito, integrando a imagem enquanto instrumento em diálogo, multiplicando, ainda e sempre, as possibilidades. Nestes cinco anos, foram muitos os projectos de palavra dita em palco em diálogo de muitos modos com a música e este verbo em partilha contribuiu sonoramente para abrir precipícios. Há agora que ouvir o pulsar dos caminhos de cada um dos por aqui andam nas cordas (vocais, do contrabaixo, cabos de navio, arames de funâmbulo). Paira por aqui uma alma, talvez penada, que seria pena deixar desvanecer, tal a neblina das madrugadas semeadoras.
Este caloroso lugar rima bem com ideias tocadas assim, pela naturalidade com que cruza cultura com território, o relâmpago com o quotidiano. Não outro lugar onde as culturas várias se polinizem deste modo inspirado. Há sempre novo projecto a fervilhar e oiço agora o da «Orelha», centro que partirá do som para criar educação. Tenho para mim que o Vítor [Paulo Pereira] cultivou a presidência da Câmara como se um carvalho na serra se tratasse. Passam estações e fogos, secas e tempestades, e continua emitindo aqueles magníficos tons vermelho vivo da sua folhagem, mudando ao sabor e saber do dia. E a erguer-se na paisagem, acolhendo quem perto habita. Ou os bichos que passam.»
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (11 Maio 2021)
«Horta Seca, Lisboa, sexta, 6 Agosto
O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.
Em setembro próximo, cumprir-se-á uma década sobre o momento chão em se imprimiu por primeira vez a palavra abysmo na qualidade de marca e nome. Não era ainda editora, antes brincadeira. (Uma vida inteira a brincar com coisas sérias e depois ainda te admiras, digo eu de mim para mim.) Demorou mais do que um ano para o projecto se impor com a lâmina da pergunta: e por que não? Confesso que por estes dias o fio da navalha diz: para quê?
Chegámos a pensar em escrever isso mesmo para dar cobertura ao esforço que significará abrir um pavilhão na Feira do Livro de Lisboa. Preferimos aniversários que abram para o futuro, ainda que lhe oferecendo as costas, como mandam os antigos, por estarem os olhos no percurso feito. A dúvida venenosa cresce, agravada pelo facto de não ser tempo de festa. Como assinalar a data sem nos deixarmos tragar pelo comemorativismo, invariavelmente rotineiro e bacoco?
Ainda esteve em cima da mesa com o Jorge [Silva], uma frase de cada livro em cadáver esquisito, entre o divertido e o simbólico. Afinal, os muros daquela assoalhada no Parque dirão com singeleza e grito tão só alguns dos títulos que foram sendo experimentados neste longo período, muito longe da totalidade, nem mesmo com o esforço da abrangência. Terão que me perdoar os autores, por instantes e ali sem-título, mas o critério foi quase só a sonoridade, o despertar de um espanto, a estranheza. Há dez anos que andamos a dizer, a fazer nas entrelinhas, sem sair da encruzilhada, em carrossel. Mas cada nome possui voz e luz, que por aí circulam, dando sinal de vida discreta, mas pulsante. Mesmo os esgotados não se esgotaram. Resultam de inquietações, experiências, ânsias, gozos. Nenhum se renega, cada qual mantendo a força de um sentido, ainda que esquecido, sumido ou extraviado. Cada um erguido pelo somatório dos esforços, misto de laboratório e sapataria.
Adiante veremos se o nevoeiro dispersa para mais passos e outra conversa.»
João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (4 Agosto 2021)
Biblioteca, Grândola, sexta, 16 Julho
O Luís [Cardoso] lá foi contar ainda uma vez das mulheres da sua vida – a mãe que se desdobrou em mais mãe de onze além dos onze iniciais, a namorada que foi ao encontro das balas assassinas – afirmando assim e sem quebrar o mistério a força das vozes femininas no seu romance-poema, romance-rio. Omnipresentes, quase invisíveis, comme d’habitude. Acabo de saber que quem lhe lança a pergunta, em acto de apresentação, e há muito o lê daquele modo íntimo como só a tradução, a Catherine Dumas assinará recensão para a Colóquio Letras.
Dá-se a reunião bem acompanhada em dia quente, neste espaço novo, que contém rios no coração dos muros, por haver ali uma belamente desarrumada exposição da Ana [Jacinto Nunes], na qual se incluem as ilustrações que abrem aquela «sonata para uma neblina». Esquecendo as salas, exemplo de uma arquitectura fechada sobre si, ignorante de funções e destinos, ali se encontram dezenas de rostos em pose. Gosto do jornal que diz ao que se pode ir, sujando as mãos, com singeleza, sem contar em demasia. A pintura da Ana, para captar a vida, surge sempre irrequieta, como que inacabada, a caminho de outra coisa, o gesto do pincel em busca da forma exacta das suas personagens, esculpidas na cor e respectivos movimento e temperatura, mulheres e animais, abraçando-se, quebrando fronteiras, celebrando nevoeiros. Um jazz no qual o tecido pode ser instrumento. Invariavelmente, os rostos olham-nos, desafiam-nos para diálogo em fluxo, fonte brotando da fronte. Oiço dos vários quadrantes que só somos na mistura com o natural. Nasceste da cor e a ela voltarás. Aqui e ali, as peças de cerâmica sublinham isso mesmo pois abrigam raízes, fazendo nascer do barro cortinas de verde, bambus onde se escondem os ventos, outros verdes esguios que podem bem dar pássaros. «Entre nuvens e papiros», assim se chama a mostra e no nome se (des)arruma o assunto.