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O paraíso existe

Nós dois. E o Inverno. Numa casa de pedra, não muito longe de um farol. Em Polperro ou na pequena praia ao fundo dos jardins de Trebah. A Cornualha. Uma lareira acesa. Cactos e cortinados de rendas às janelas. O perfume do cachimbo. Espalhados pela casa, livros de Pound e Simenon, de Melville e de Lowry. Pelo ar, violas da gamba barrocas ou o violino de Leroy Jenkins.

Eu chego da beira-mar, cana de pesca ao ombro, dois peixes luzidios pendendo à cintura. Tu abres uma garrafa de Eiswein. Sorris, como sorriste por me veres chegar, na segunda vez, lembras-te? E perdes-te pela casa, pelos teus pensamentos, por uma canção murmurada que, não sei por quê, me soa japonesa.

A tarde aproxima-se do fim e agora, por aqui, escurece muito cedo. Resta-nos aguardar que a paz nos sorria as boas-noites no céu estrelado. Mas eis que, lá fora, um murmúrio se vai aproximando. Vozes. Risos. Abro a porta e acolho, de braços abertos, os inesperados convivas. Eles não precisam de se anunciar. Aparecem quando querem. São dos nossos mortos os mais amados: o meu pai, o teu avô, o António Dias, o Emanuel Félix. Estão vivos. Como sempre. Cada um traz um calor só seu e uma frase de luz. Abrimos mais vinho, agora tinto, duas garrafas de Syrah. E sentamo-nos, a falar de tudo e de nada, nas cadeiras do Céu, baixadas à Terra para a ocasião.

O Emanuel tem um livro novo. Entrega-mo timidamente. Leio para todos o primeiro poema e, mesmo depois de terminar, há, ainda, um silêncio pela sala, como os que sucedem a uma tempestade. És tu que o interrompes, muito baixo: “Escrevi um poema”. Sempre achei que o farias, mas o anúncio surpreendeu-me. Diriges-te ao quarto e, de regresso, entrega-lo ao meu pai, que o lê na sua voz antiga, de fazer pensar crianças. Novo silêncio. Pego-te na mão e fico a olhar-te, mais bela e frágil e sobre-humana que nunca.

O Dias trouxe uma garrafa de medronho artesanal. Vou buscar os cálices e um novo perfume invade a casa, penetra as vigas de madeira, traz até nós os cheiros e as cores de um Algarve que, há décadas, não há: a alfarroba seca, as carroças de burros, as dunas prazenteiras, raias secando ao sol…

É já madrugada quando nos despedimos. O colchão de palha e os cobretores velhinhos recebem-nos, cansados e felizes, certos da Eternidade e antecipando a manhã seguinte, o chá Earl Grey, a fatia de pão escuro com compota de laranja, o passeio pelo campo de todas as manhãs, o mergulho no mar não importando o frio, a conversa descobrindo recantos à candura, a memória – sempre – da amada Lisboa.

O novo dia amanheceu chuvoso. É quase sempre assim e sempre belo. Vamos serpenteando pela mata, buscando abrigo sob as copas das árvores, que, insubmissas, nos oferecem seus pingos mais gelados. Acolá resistem folhas de um dourado tão triste. Ao longe, entre nenúfares, o coaxar das rãs. Guardo-o no pequeno gravador que me deste pelo Natal, Música Concreta sem cimento ou motores.

O terreno é inclinado e vem-me à ideia a Calçada de Santana, da morte de Camões e de Amália nascendo, ambos chorando da pátria o mar imenso. Eu sei que tens saudades dos teus pais, como eu da minha mãe, dos meus irmãos e de dois ou três amigos com quem não são precisas muitas palavras. Digo-te: “Para o mês que vem, havemos de ir a Lisboa”; ficas contente.

“O Paraíso existe”, dizia o Miguéis, falando de Lisboa. Pois existe. Mas por que raio o dividiu Deus entre dois lugares e nos deu tão frágeis asas para a viagem?

Miguel Martins (originalmente publicado no jornal Público)

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