Publicado em

Pedro Miguel Silva lê «O Plantador de Abóboras»

Pedro Miguel Silva lê «O Plantador de Abóboras», de Luís Cardoso (Mil Folhas/ Deus me livro 6 Outubro 2021)

«Em 1930, Jean Cocteau escreveu o monólogo “A Voz Humana”, que acabaria por se tornar numa obra intemporal da literatura mundial e num nutritivo alimento teatral, ao revelar uma maiores tragédias reservadas à vida humana: o drama das relações amorosas. Um sentimento que, de certa forma, está presente em “O Plantador de Abóboras” (Abysmo, 2020), livro de timorense Luís Cardoso onde, através da voz de uma mulher que esperou pelo noivo durante longos anos, viajamos pela triste sina de um país por onde passaram os “malae colonialistas”, os “kamikazes do Japão”, os “komodo ou lagartos da Indonésia” e, por fim, “os seus libertadores”. E sempre com o “Dom Quixote” de Miguel Cervantes a comandar, à batuta, os seus três andamentos.»

Share
Publicado em

Henrique Manuel Bento Fialho lê Ana Freitas Reis

Henrique Manuel Bento Fialho lê «Cordão», de Ana Freitas Reis

Mais sóbrio em termos formais é o primeiro livro de Ana Freitas Reis, o qual obedece a uma distribuição rigorosa dos poemas que leva a pensar nesta obra como num longo poema em gestação. A palavra Cordão (Abysmo, Março de 2021) do título desperta, desde logo, inúmeras imagens, sendo a mais intensa aquela que acaba por advir da epígrafe final pedida de empréstimo a Herberto Helder: «cordão de sangue à volta do pescoço». Tratar-se-á, então, de um cordão umbilical, algo que, de resto, é sugerido no poema inicial que encena um parto, repercutido posteriormente nos pequenos poemas distribuídos por páginas ímpares através de um complexo lexical assaz sugestivo desse «rebento milagre» inaugural: coração, sangue, sopro, útero, pulmões, raiz. Não andaremos longe da verdade se situarmos esta poesia no campo de uma representação do corpo feminino e da mais essencial das suas funções, albergar a geração de um ser. Nisso é possível estabelecer um paralelismo com a própria natureza do poema, hospedeiro de uma entidade e de uma identidade que resulta da relação apaixonada entre quem escreve e quem lê. Mas nesse caso estaríamos já numa dimensão metafísica que não me parece ser a mais adequada à singularidade deste cordão, o qual me chega nitidamente enquanto elo ao «assombro de estar vivo» (p. 11). O que ressalta do umbigo é a ligação a uma anterioridade que em cada ser perpetua o mistério da vida. Espantosa é a forma como esse mistério acaba celebrado nestes poemas publicados num tempo obnubilado pela ameaça persistente da morte, a qual, não tendo sido omitida, serve para lembrar que «Ainda tens coisas acesas no teu corpo» (p. 58). Penso pois neste livro como na gestação de um poema, e penso no poema como na gestação de um ser. Poesia indelevelmente ligada ao corpo, às possibilidades de representação do corpo, por um cordão que vai sendo desatado de verso a verso através de uma sensibilidade rítmica notável que aborda a respiração como uma doação. O recurso insistente a anáforas pontua o movimento sincopado de um coração, na demanda de uma musicalidade que reverbera uma meticulosa selecção verbal. Não faltam sequer alusões mitológicas (o barro que se molda, Adão e Eva) ou ao paganismo organizado em torno dos ciclos da natureza (referências ao correr dos meses, à Primavera enquanto momento de renovação). O Verão é a estação privilegiada desta poesia solar, a qual se desvia da melancolia repisada e da soturnidade elegíaca mais corriqueira optando pelo fulgor das chuvas que fertilizam a terra enquanto «possibilidade na alegria» (p. 25). Há neste Cordão uma reaproximação do homem à natureza que supera a ruptura operada por um racionalismo castrador e cristalizador, o mesmo que nos usurpou toda a possibilidade de espanto e de mistério, toda a hipótese de milagre. Saúde-se a coragem de num livro de poesia fascinado com a vida, neste início de século tão dado à morte:

MINTO SOBRE O ESTATUTO CONTEMPORÂNEO

todos somos, finalmente, aspectos vagabundos da naturezaMaria Gabriela Llansol 
Continuamos a procurar o espanto
nas montanhas, insistimos
nos cumes altos, miradouros
frívolos ao serviço dos registos.
Saio para sentir o odor lunar,
procuro sinais de nascença pelo solo.
 
Não temo o chão da terra.
 
É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos
de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se em direcção ao centro
da fornalha.
 
Porque sim,
Pela indolência da seiva que sabe
de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre
quando afinal repouso nos seios da natureza.
 
Fica de dia.
Uma chuva opulenta inunda o nosso quarto,
certos beijos prolongam o voo,
sem temer a existência.
 
Hoje só conheço a terra,
a única que não esquece a persistência
e a possibilidade na alegria.

Share
Publicado em

Paulo Serra lê «O Plantador de abóboras»

Paulo Serra«O Plantador de abóboras», de Luís Cardoso (Postal do Algarve, 20 Fevereiro 2021)

«Luís Cardoso é um dos raros autores que tem Timor como berço e a sua profícua obra centra-se em temas como a memória, a identidade, a História. Todos os seus livros se interligam, inclusivamente, ora com referências explícitas ao autor e aos outros títulos, ora por episódios ou motivos que vão ressurgindo. Esta intertextualidade homoautoral, onde confluem ainda diversas outras referências exteriores à sua obra, serve como comprovação da existência de um mundo ficcional muito próprio, atestando a criação de um imaginário que efabula e recria toda uma geografia da alma. Quando lemos a sua obra e sobre a sua obra, fica aliás a sensação que partiu de Timor para começar a escrever sobre Timor. Nalgumas das suas obras, não se refere contudo ao cenário como sendo Timor. Em O Plantador de Abóboras, designa-se o reino de Manu-mutin (que podemos tomar como um local imaginário ou como sendo Manatuto) escondido algures no interior do país: «Uma terra oculta como tantas outras que foram descobertas.» (p. 95)
O autor recorre constantemente a expressões e palavras do tétum, língua oficial timorense a par do português. Por exemplo, quando se refere malae-mutin para designar o europeu, e malae-metanque significa africano. A polifonia linguística está aliás presente noutros escritos do autor, como o seu conto Cáspita, onde se explica como o narrador cresce rodeado de várias línguas: o laclei, o mambae, o tétum, e por fim o latim… Em O Plantador de Abóboras, a narradora fala-nos da sua pronúncia que descreve como uma «estranha mistura» entre «mambae, tétum, português e o grasnar de um ganso» (p. 150). Na sua prosa, Luís Cardoso brinca constantemente com as palavras, reflectindo sobre elas, como acontece quando a narradora brinca com o uso do verbo escrutinar. Usa ainda refrões que marcam uma cadência muito própria no romance (e que recordam a escrita de António Lobo Antunes). A própria estrutura do romance é circular, feita de recorrências, repetições, avanços e recuos.
É muito curiosa, e um dos aspectos mais fortes da sua obra, a forma como o autor se desdobra nos seus escritos em narrador ou em personagem. Nesta obra, especificamente, a narradora é uma mulher (como já acontecia em Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo). E mais perto do final percebemos que o narratário é um jovem seminarista que tencionava estudar Agronomia em Portugal, sonho esse interrompido pela guerra.
A intertextualidade está presente ao longo do livro, como aliás acontece frequentemente na sua obra. Se, por um lado, o próprio subtítulo do livro é Sonata para uma neblina, por outro lado, a sua estrutura tripartida (do Primeiro ao Terceiro Andamento) apontam para uma sinfonia. Da literatura à música (por exemplo, com a música Que sera, serana voz de Doris Day), encontramos diversos ecos da comprovação da existência de todo um mundo alternativo e paralelo ao mundo empírico, o da arte. Mas é a primeira vez que num livro do autor se incorre na pintura, pois a nossa protagonista e narradora pinta. Ainda mais num diálogo surpreendente com a belíssima capa e as ilustrações a cores de Ana Jacinto Nunes, que tanto enriquecem este livro.
Ainda a propósito da intertextualidade temos a forte presença do Dom Quixote, citado em várias passagens no original castelhano. O narratário, que se faz acompanhar permanentemente desse livro, é aliás apelidado de Sancho Pança pela narradora: «Faltava-lhe o arrojo e a loucura de Don Quijote» (p. 153).»

Share
Publicado em

João Rosa Miranda lê Fernanda Botelho

João Rosa Miranda«Gritos da Minha Dança», de Fernanda Botelho (Deusmelivro, 15 Fevereiro 2021)

«As palavras foram as fiéis companheiras da vida de Fernanda Botelho, com as quais ousou “procurar a quadratura do círculo ou a pedra filosofal”. No decurso da sua jornada, a autora encontrou o tesouro do léxico português e um estilo literário singular repleto de jogos de palavras, aliterações e “divertidos pensamentos aforísticos”. Seja o tema a metafísica, a eutanásia ou o Big Show SIC, as palavras da escritora bailam elegantemente sob os holofotes dos textos que compõem “Gritos da Minha Dança”.
Fernanda Botelho definiu o seu derradeiro livro como um conjunto de “reflexões de uma septuagenária ímpia escritas antes de súbita e suspeita morte”. Contudo, esta antologia assume um propósito de maior relevo, pois apresenta a ponderação e lucidez de quem traz ao palco, por uma última vez, uma extraordinária coreografia.»

Share
Publicado em

Ana Vargas lê «O plantador de abóboras», de Luís Cardoso

Ana Vargas«O plantador de abóboras», de Luís Cardoso (Clube de leituras, 1 Fevereiro 2021)

«N’O Plantador de Abóboras está a história de Timor-Leste, do último século: a revolta do Manufahi, o colonialismo português, a invasão japonesa, as colunas negras, a invasão indonésia e, por fim, a independência. E estão também as suas tradições e crenças, o crocodilo, os galos, o café, algumas palavras em tétum. E está, parece-me, uma declaração de amor àquele novíssimo país à mistura com a descrença ou desilusão quanto à sua elite:
“Que pelo facto de teres participado na luta de libertação não te concede nenhum privilégio especial de esbanjar o dinheiro do Fundo Petrolífero”.
Em formato de poesia e com o ritmo de uma sinfonia, é também um apelo à memória porque como diz “O passado é um lugar estranho quando se sai dele como se nunca lá se tivesse entrado.”»

Share