Ana Freitas Reis
António Carlos Cortez lê «Cordão», de Ana Freitas Reis
Uma poesia (do e em) feminino (a), de António Carlos Cortez sobre «Cordão», de Ana Freitas Reis (JL, 17 Novembro 2021)
Henrique Manuel Bento Fialho lê Ana Freitas Reis
Henrique Manuel Bento Fialho lê «Cordão», de Ana Freitas Reis
Mais sóbrio em termos formais é o primeiro livro de Ana Freitas Reis, o qual obedece a uma distribuição rigorosa dos poemas que leva a pensar nesta obra como num longo poema em gestação. A palavra Cordão (Abysmo, Março de 2021) do título desperta, desde logo, inúmeras imagens, sendo a mais intensa aquela que acaba por advir da epígrafe final pedida de empréstimo a Herberto Helder: «cordão de sangue à volta do pescoço». Tratar-se-á, então, de um cordão umbilical, algo que, de resto, é sugerido no poema inicial que encena um parto, repercutido posteriormente nos pequenos poemas distribuídos por páginas ímpares através de um complexo lexical assaz sugestivo desse «rebento milagre» inaugural: coração, sangue, sopro, útero, pulmões, raiz. Não andaremos longe da verdade se situarmos esta poesia no campo de uma representação do corpo feminino e da mais essencial das suas funções, albergar a geração de um ser. Nisso é possível estabelecer um paralelismo com a própria natureza do poema, hospedeiro de uma entidade e de uma identidade que resulta da relação apaixonada entre quem escreve e quem lê. Mas nesse caso estaríamos já numa dimensão metafísica que não me parece ser a mais adequada à singularidade deste cordão, o qual me chega nitidamente enquanto elo ao «assombro de estar vivo» (p. 11). O que ressalta do umbigo é a ligação a uma anterioridade que em cada ser perpetua o mistério da vida. Espantosa é a forma como esse mistério acaba celebrado nestes poemas publicados num tempo obnubilado pela ameaça persistente da morte, a qual, não tendo sido omitida, serve para lembrar que «Ainda tens coisas acesas no teu corpo» (p. 58). Penso pois neste livro como na gestação de um poema, e penso no poema como na gestação de um ser. Poesia indelevelmente ligada ao corpo, às possibilidades de representação do corpo, por um cordão que vai sendo desatado de verso a verso através de uma sensibilidade rítmica notável que aborda a respiração como uma doação. O recurso insistente a anáforas pontua o movimento sincopado de um coração, na demanda de uma musicalidade que reverbera uma meticulosa selecção verbal. Não faltam sequer alusões mitológicas (o barro que se molda, Adão e Eva) ou ao paganismo organizado em torno dos ciclos da natureza (referências ao correr dos meses, à Primavera enquanto momento de renovação). O Verão é a estação privilegiada desta poesia solar, a qual se desvia da melancolia repisada e da soturnidade elegíaca mais corriqueira optando pelo fulgor das chuvas que fertilizam a terra enquanto «possibilidade na alegria» (p. 25). Há neste Cordão uma reaproximação do homem à natureza que supera a ruptura operada por um racionalismo castrador e cristalizador, o mesmo que nos usurpou toda a possibilidade de espanto e de mistério, toda a hipótese de milagre. Saúde-se a coragem de num livro de poesia fascinado com a vida, neste início de século tão dado à morte:
MINTO SOBRE O ESTATUTO CONTEMPORÂNEO
todos somos, finalmente, aspectos vagabundos da naturezaMaria Gabriela Llansol
Continuamos a procurar o espanto
nas montanhas, insistimos
nos cumes altos, miradouros
frívolos ao serviço dos registos.
Saio para sentir o odor lunar,
procuro sinais de nascença pelo solo.
Não temo o chão da terra.
É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos
de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se em direcção ao centro
da fornalha.
Porque sim,
Pela indolência da seiva que sabe
de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre
quando afinal repouso nos seios da natureza.
Fica de dia.
Uma chuva opulenta inunda o nosso quarto,
certos beijos prolongam o voo,
sem temer a existência.
Hoje só conheço a terra,
a única que não esquece a persistência
e a possibilidade na alegria.
abysmo a celebrar a primavera-palavra no Festival 5L
«Cordão», Ana Freitas Reis: apresentação
Apresentação de Cordão, de Ana Freitas Reis, no «Ronda Leiria Poetry Festival» (16 Março 2021), com Inês Fonseca Santos, João Paulo Cotrim, Marcelo Reis de Mello e Francisca Camelo