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Paulo Serra lê «O Plantador de abóboras»

Paulo Serra«O Plantador de abóboras», de Luís Cardoso (Postal do Algarve, 20 Fevereiro 2021)

«Luís Cardoso é um dos raros autores que tem Timor como berço e a sua profícua obra centra-se em temas como a memória, a identidade, a História. Todos os seus livros se interligam, inclusivamente, ora com referências explícitas ao autor e aos outros títulos, ora por episódios ou motivos que vão ressurgindo. Esta intertextualidade homoautoral, onde confluem ainda diversas outras referências exteriores à sua obra, serve como comprovação da existência de um mundo ficcional muito próprio, atestando a criação de um imaginário que efabula e recria toda uma geografia da alma. Quando lemos a sua obra e sobre a sua obra, fica aliás a sensação que partiu de Timor para começar a escrever sobre Timor. Nalgumas das suas obras, não se refere contudo ao cenário como sendo Timor. Em O Plantador de Abóboras, designa-se o reino de Manu-mutin (que podemos tomar como um local imaginário ou como sendo Manatuto) escondido algures no interior do país: «Uma terra oculta como tantas outras que foram descobertas.» (p. 95)
O autor recorre constantemente a expressões e palavras do tétum, língua oficial timorense a par do português. Por exemplo, quando se refere malae-mutin para designar o europeu, e malae-metanque significa africano. A polifonia linguística está aliás presente noutros escritos do autor, como o seu conto Cáspita, onde se explica como o narrador cresce rodeado de várias línguas: o laclei, o mambae, o tétum, e por fim o latim… Em O Plantador de Abóboras, a narradora fala-nos da sua pronúncia que descreve como uma «estranha mistura» entre «mambae, tétum, português e o grasnar de um ganso» (p. 150). Na sua prosa, Luís Cardoso brinca constantemente com as palavras, reflectindo sobre elas, como acontece quando a narradora brinca com o uso do verbo escrutinar. Usa ainda refrões que marcam uma cadência muito própria no romance (e que recordam a escrita de António Lobo Antunes). A própria estrutura do romance é circular, feita de recorrências, repetições, avanços e recuos.
É muito curiosa, e um dos aspectos mais fortes da sua obra, a forma como o autor se desdobra nos seus escritos em narrador ou em personagem. Nesta obra, especificamente, a narradora é uma mulher (como já acontecia em Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo). E mais perto do final percebemos que o narratário é um jovem seminarista que tencionava estudar Agronomia em Portugal, sonho esse interrompido pela guerra.
A intertextualidade está presente ao longo do livro, como aliás acontece frequentemente na sua obra. Se, por um lado, o próprio subtítulo do livro é Sonata para uma neblina, por outro lado, a sua estrutura tripartida (do Primeiro ao Terceiro Andamento) apontam para uma sinfonia. Da literatura à música (por exemplo, com a música Que sera, serana voz de Doris Day), encontramos diversos ecos da comprovação da existência de todo um mundo alternativo e paralelo ao mundo empírico, o da arte. Mas é a primeira vez que num livro do autor se incorre na pintura, pois a nossa protagonista e narradora pinta. Ainda mais num diálogo surpreendente com a belíssima capa e as ilustrações a cores de Ana Jacinto Nunes, que tanto enriquecem este livro.
Ainda a propósito da intertextualidade temos a forte presença do Dom Quixote, citado em várias passagens no original castelhano. O narratário, que se faz acompanhar permanentemente desse livro, é aliás apelidado de Sancho Pança pela narradora: «Faltava-lhe o arrojo e a loucura de Don Quijote» (p. 153).»

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Imagine: Relatos de um tempo estranho, atípico e extraordinário

Paulo Serra lê «Imagine» (Postal do Algarve, 25 Janeiro 2021)

«Num período em que o mundo vive novo confinamento, com uma vaga ainda mais avassaladora de casos, e em que eu, pessoalmente, estou fechado numa casa estranha a cumprir a quarentena requerida àqueles chegam de viagem, com quase nenhum contacto com o mundo exterior (a não ser o virtual), este livro não podia ter chegado em melhor altura. Imagine: Relatos de um tempo estranho, atípico e extraordinário, publicado pela Arranha-céus (editora chancela da abysmo), é um livro feito por pessoas que nasce da partilha de testemunhos online entre amigos e clientes da Mercer Portugal sobre como foi vivida a pandemia, o que mudou e moldou a nossa vida, assim como a nossa forma de trabalhar. Esta ideia nasceu de um momento de partilha durante as noites de confinamento instituído em março de 2020 em que a Mercer “juntou” por Zoom amigos e conhecidos, em grupos de 5 a 7 pessoas para, em tom informal e descontraído, falarem sobre si e as suas experiências. Estas conversas decorreram às «5 para as 10 da noite» com o requisito obrigatório de se fazerem acompanhar por um copo de vinho e culminam neste livro que reúne 28 testemunhos de profissionais das áreas de Recursos Humanos, Marketing e Direcção de empresas, isto é, «Pessoas de Pessoas» (p. 41) das mais diversas áreas, como a hotelaria, seguradoras, banca, ensino, etc.»

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