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Colher e ser colhido

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (28 Julho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 16 Julho

Que esconde uma montra? Percorro a página de abertura do sítio e vejo como vem sendo parca a colheita, que nunca foi dada a abundâncias. Logo os restos de sangue camponês encontram razão nas vicissitudes do tempo, cargas de água e sol abrasador ou aquele nevoeiro que se abateu sobre o mundo e as vontades. O bom agricultor sabe ler a meteorologia, até a atmosfera da desgraça, pelo que não será apenas por isso. Onde se conservam as sementes adiadas, em que compostagem os apodrecidos? E as sombras, que celeiro bojudo as mantém na boa temperatura? Tanto por enfrentar e as ferramentas ferrugentas, rombas, quebradas…

O conforto de uma côdea surge de volumes como este «Eva – Ilustradoras Portuguesas do Século XX», aliás no seguimento do «Tom», com grafismo que se vai tornando assinatura (algures na página uma capa) e que celebra a letra em entrada para exposições portáteis que andam por aí nas mãos e olhos de quem as agarrar. O Jorge [Silva] continua, aqui e ali a convite de instituições, a fazer do seu hobby uma vocação, de um interesse pessoal autêntico serviço público. Ao contrário de tantos respigadores, ele pensa o que vai recolhendo quando o oferece em livro. (Em mercado drogado em novidades, desaconselham-se indícios que datem a obra. Caiu em desuso a classificação de catálogo, para que o livro não fique preso a uma circunstância.) Neste caso, que esteve patente na Casa da Cerca, em Almada, o ar dos tempos soprou-lhe por tema o feminino. São nove os nomes primeiros (Alice, Mily, Raquel, Guida, Laura, Ofélia, Sarah, Maria e Fernanda), quase todos bastante conhecidos, mas manda o habitual que se conheça mais o nome (vagamente) que a obra (minimamente). Esta sistemática recolha do esquecimento traz consigo invariável motivo de espanto. Para além dos costumes citadinos, os da alta burguesia e os da mítica ruralidade, de uma infância não menos mítica, encontramos representações da mulher que escapam ao lugar-comum e intenso trabalho plástico. Um bálsamo, as expressivas interpretações de Maria Keil para «Folhas Caídas», do Garrett.

Estonteantes, as composições e as poses e os rostos de Guida Ottolini para a capas da revista «Eva». Melancólicas, as formas de Mily Possoz, que vão do minimal ao colorido solar, passando pelo quase cubismo em ponta seca. Postas as lentes de aumentar da actualidade, o Jorge não hesita em sublinhar na contra-capa: «apesar das contingências da sua educação escolar e familiar, e do expectável papel que a sociedade patriarcal lhes reservava, muitas mulheres conseguiram afirmar um percurso ou uma carreira como ilustradoras editoriais, realizar uma obra inspiradora e inspirada nas vanguardas dos movimentos estéticos e pugnar por um papel igualitário na sociedade do seu tempo.»

Tendo a achar, a partir de testemunhos, que muitas vezes se tratou apenas de viver as possibilidades ao máximo. Com o que tal significa sempre ignorar com sobranceria o impossível anunciado, imposto, palpável. Surge até como metáfora esta brincadeira à la Silva com o código de barras. A imposição logística de um pequeno indicador de (quase) identidade, sobretudo, preço e arrumação, transforma-se em pretexto para modular formas. Ao limite.

São Cristovão, Lisboa, terça, 27 Julho

Tem andado um rio entre nós, pelo que há muito me não encontrava com o Paulo [José Miranda], para acerto de agulhas e apanha da notícia madura. Acompanho nestas páginas e às terças o seu excêntrico contributo para a letradura, não apenas com títulos – entre o doce e o estridente –, mas também com – e tal não será para todos – autores que suscitam a busca dos sequiosos leitores. Vale volume, pelo que comecem os trabalhos de apuro e enxertia! Em 2022, arredondam-se datas e soam já projectos pelo que temos de pensar em arredores para o centro que será, para nós e todo sempre, o livro. E a poesia. Passámos pelo futebol e, pour cause, um verde branco, antes de nos atirarmos ao tinto e às mudanças, que serão apenas de geografia. Apenas? Sim, quando os passos são no caminho da conversão, ao encontro de si mesmo, o exacto lugar não interessa por aí além. Mal lhe falei de novidades traduzidas, tomei nota da sua surpresa por publicarmos traduções. Se nem os casa conhecem os cantos às lombadas… Quedámo-nos em princípio muito inicial e prometedor de romance. O Paulo gosta de ler excertos em voz alta e eu de o ouvir. Não que me concentre, antes me faz andar por lugares. Lá foi o olhar subindo e descendo a estreita e geométrica escadaria que se estende entre azuis à nossa frente, Tejo em cima e céu em baixo.

Calcutá, Lisboa, terça, 28 Julho

Estão elencadas, e não apenas pelos profissionais do contratudismo, as fraquezas dos festivais literários: a vacuidade das ideias distribuídas, a claustrofobia dos temas e editoras dominantes, o espectáculo das vaidades, a promoção da leitura reduzida ao culto do autor, a dislexia entre performance pública e qualidade de escrita, a insistência em um só modelo de conversa pequena perante plateias enormes, etecetera. Ah, e o excesso de festa! Cultura não condiz com alegria, coisa de entretenimento. (O que para aí vai, aliás, de confusão entre uma e outro.) Por princípio, não nos negamos aos ditos. Para o melhor e o pior, são encontros. Quando solicitados, participamos muito para além das nossas possibilidades (e da nossa capela). Nem sempre com bons resultados, nem sempre recebendo o devido tratamento.

Anuncia-se o regresso do Folio, sendo caso particular. Antes mesmo dos dias concretos e definidos de Óbidos, tratamos de pôr mesas de tal modo cubistas que não sei como os copos e os pratos e as vozes e o resto de estar à mesa se aguentam. Com a Raquel [Santos] e o José [Pinho], além de ocasionais convidados, pintamos assim festival dadaísta e muito particular de leituras ao ouvido e absurdas encenações imersivas, projecções holográficas de autores queridos e outros, jogos de sociedade a partir das sinopses, combate entre badanas, intervenções relâmpago de poetas patafísicos, disparates épicos de par com ambiciosos centros de experimentação, enfim, ideias, planos, propostas, esboços e delírios. Não podia ser de outro modo, da gigantesca lista riscada nas toalhas de papel apenas se cumprirá à risca uma sensata e mínima parte, mas a discussão, o gargalhado, a criação bruta, o dito e o pensado, faz com que se cumpra logo ali algo de essencial. Para mim, o resto será sobremesa.»

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O eu entre palco e plateia

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (21 Julho 2021)

Escola de escritas, Algures, sábado, 17 Julho

Na véspera insistia em saboroso almoço, no qual se tratou de cansaços interiores e despolíticas externas, além de dedos e anéis, que as comunidades de leitura me parecem cruciais na promoção de leitura, algures entre a suave entrada e o elegante digestivo. Também por implicarem os leitores nas suas leituras. Quantos livros esconde um livro? Este Clama (Clube de Leitura Abençoados Malditos) dificilmente podia ter começado melhor com «Os Meus Oscar Wilde», de André Gide (ed. Sistema Solar), mas que, no fundo, pertence ao tradutor, Aníbal Fernandes. Os dois In Memoriam são enquadrados por pré, inter e pós-fácios, os quais, naquilo que convocam, são moldura pintada a participar na composição e expressividade da grande imagem. A vida, saravah, é a arte do encontro. E talvez a arte não seja menos a vida dos encontros. Estamos perante um triângulo de bons e produtivos malditos, ficando por ora, Pierre Louÿs na plateia assombrada pela encenação brutal de Wilde e Gide. A morte de um suscita no outro o registo definitivo do momento em que a alegria lhe foi revelada, em que começou a viver. Quando o coração antes apenas tomado pelo desejo abria para a luz de outros afectos. Sexo e amor eram dicotomias afastadas, e foi pela escrita que Gide tentou coser tal ferida. Assim como a usou para perseguir a alegria (nota para o futuro: voltar às páginas que busca esse pólo). No segundo e mais breve texto, o amargor insinua-se e a avaliação enegrece, mergulha em cinzas. A realidade cobrou com sangue ao devir em cena de Wilde. Entre um e outro texto, há excertos do processo em tribunal, dolorosa e bem-humorada peça de teatro onde a lei procura no miolo das palavras os sempiternos medos: o sexo desregrado, a corrupção da juventude, a ociosidade, o prazer, a alegria, enfim, o desafio ao deus posto em religião. O livrinho acaba sendo, ele mesmo, introdução a lugares e caminhos dos ditos malditos: a escrita tornada bússola do eu, aquele pensar com o corpo e a partir dele, o esforço para tornar indistinta vida e arte, cabal maneira de viver uma e outra. Vede com Louÿs, também em prefácio a «Afrodite» (ed. Círculo de Leitores), como fazê-lo: «É que a sensualidade é a condição misteriosa, mas necessária e criadora, do desenvolvimento intelectual. Aqueles que nunca sentiram até ao limite, para as amar ou para as maldizer, as exigências da carne, são por isso mesmo incapazes de compreender toda a extensão das exigências do espírito. Assim como a beleza da alma ilumina o rosto, também a virilidade do corpo fecunda o cérebro.”

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E esse lado do fim do mundo?

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (7 Julho 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, Domingo longo começado no Sábado, 12 e 13 Junho

Na economia do tempo do micro-editor nunca sobra em quantidade para este lavrar das terras férteis. Estou em crer que o Mário [Gomes] se vai tornando na mais saborosa das fraudes literárias. Por exemplo, o Arno Schmidt nas suas mãos parece ter sido escrito em português, tal a limpidez de cascalho no fundo do riacho que por aqui se ouve. Será Arno extensão de Gomes? Anuncia-se, portanto, «A República dos Doutos – Romance-breve das Latitudes dos Cavalos», delirante “reportagem” ao lugar maravilhoso onde as artes e as culturas viveriam sem preocupações outras que a criação, ilha em movimento dividida por um muro, habitada por seres fabulosos e outros mais reconhecíveis.

Estende-se narrativa (para conforto dos carentes da anedota e outros preguiçosos) e explodirá moral (de agradar às tribos sanguinolentas dos malditos e outros mortos-vivos), mas o essencial está no labor da linguagem, com multiplicação ao infinito de planos, a lúdica recomposição das pontuações e outros sinais, e, sobretudo, o fraseado em pizzicato sobre escórias, imagens potentes, lâminas saltitantes, espinhos de rasgar peles. E por nisso falar, surpreendente erotismo para tão apocalíptico cenário. Certas obras inventam o presente. Se «Leviatã|Espelhos negros» podia ser sido livro de cabeceira durante a pandemia, estas «Latitudes dos Cavalos» continuam a ser ferramenta de ver ao longe, o que nos acontece ao perto. Ao calhas (e desformatado):

«Oh, ainda tem 1 hora ou 2 horas : afinal o fim do mundo é bem perto.» : «Pois, para pessoas como você !» (Pelos vistos ele gostou da resposta; passou a mão pelo bloco de barba maciço e deu um salto em frente, orgulhoso).
Nomes como terramotos ! : um sítio por onde passámos chamava-se ‹Tatara-káll› (e os cascos retumbavam ocos, como que a condizer !). –

Na – enfim, poderemos falar duma ‹aldeia› ? : as poucas cabanas de ramos esgalhados (alguns deles desfolhados até pelos mais famintos ou preguiçosos !). / Todos haviam retomado os seus afazeres, em plena paz : centauros barbudos com gadanhas ceifavam os lameiros. (Um deles, todo silhueta, levantou a garrafa, bebendo; (e eu achei por bem beliscar a minha perna : será que tinha adormecido a ler um livro de mitologia grega, Preller=Robert ?)).

Não ! Nunca na vida ! : uma centaura de óculos era certamente uma novidade (e além disso, mais velha : um balde de ferro com água estirava-lhe o braço : as mais velhas seguravam os seios maiores com ambas as mãos ao galopar. – ’ma fábrica de soutiens. Podia ser um negócio bombástico !).

E todos os nomes, como trovoadas, como lados entrelaçados, como aragem de fogo; como nudez da terra, cadinhos esquentados, ouro picado.»

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Situacionismo

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (23 Junho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 11 Junho

Há uns meses foi o telemóvel que resolveu armar-se em situacionista e mandar nas minhas conversas, desatando a fazer chamadas em direcções indesejadas. Deu conversas longas e divertidas e uma delas foi com o António Torrado, que agora parte para parte incerta. A costumeira ignorância arrumou-o na gaveta de escritor para putos, coisa das mais menores, algures entre o conto e a poesia, uma necessidade por causa da didáctica e para entreter e por isso agora em atenta vigilância. Também teve pé em palco, mas isso pouco muda. Ora o António, que foi editor, era escritor a merecer outras sortes, as da leitura, nos mínimos. Se nele entrarmos pelo lado do absurdo logo a viagem se faz compensadora. Mas não, dá menos trabalho e alinhar na celebração pacóvia do que nos chega mastigado do que procurar raízes na terra comum. Uns dias antes, também nos havia deixado a Leonor Riscado, que gastou a vida precisamente na valorização desta disciplina luminosa e obscura. Não consigo deixar de procurar na minha cabeça em incessante crash uma palavra, uma única trocada com cada um e que gostasse que fosse, para sempre, a sua e de mais ninguém. Há palavras que procuram as pessoas certas onde morar.

Livraria Verney, Oeiras, Sábado, 19 Junho

Tem acontecido neste espaço, sob a minha desatenção, uma curiosa troca de olhares. Tendo em depósito a obra de Neves e Sousa, primeiro o Nuno [Saraiva], e neste momento a Catarina Sobral trataram de a ilustrar, ilustrar o desenho, outro modo de o comentar, de o ler, de o tornar seu. A tinta-da-china ganhou cores e o registo rápido de viajante atento ganhou sequência quase narrativa: se um grupo se junta em torno do fotógrafo em Neves e Sousa, a Catarina faz-nos a ver a fotografia possível. O que era transparência nos traços de um passou a expressividade no desenho de outra. Os corpos que se queriam reais passaram a ser formas de um vocabulário pessoal. E o essencial dá-se nesta maravilhosa deslocação dos corpos nas paisagens. E se no preto e branco só a podemos adivinhar, nas massas de cor apresenta-se em todo o seu esplendor, sua excelência, a luxúria. Fico preso a um mangal (na página), veios e folhagens sopradas pelo vento, lugar de híbridos e cruzamentos de estados, onde a terra se faz líquida e o vegetal toca as nuvens. Oculto nas folhagens está o observador indistinto do horizonte, animal que respira e vê.

Livraria Verney, Oeiras, Sábado, 19 Junho

Ainda nos reunimos sob o signo do medo. Coreografamos os primeiros momentos com a dança da hesitação, não sei se mão se cotovelo, se abraço ou aceno. Afasto por instantes a máscara para que me reconheçam ou continuo oculto e falante? Perceberão que estou sério ou sorridente? Se as comissuras falassem… O Luís [Cardoso] invoca os bons espíritos e com eles se dará a sessão de lançamento d’ «O plantador de abóboras», por acaso já bastante lido e comentado. Ana Paula Tavares faz justíssimo enquadramento, a corada Ana [Jacinto Nunes] não se cansa de elogiar as mulheres, personagens da verdade, e a Natália Luiza trará em voz alta a toada desta «sonata para uma neblina».

E o Luís fala como se cantasse e cantou de igual modo, a embrulhar a complexidade de cada gesto no pano da simplicidade. Um pouco como tem dito a cada entrevista: esta história foi-lhe entregue em herança por mulher perdida nas memórias esfumadas de Timor, mas o romance vai muito além dessas montanhas; que queria compor um longo poema de amor, que bem se espraia naquelas páginas, mas não se resume a isso, não sendo pouco. A ternura com que talha as personagens, gente e planta, animal e paisagem; o modo de contar como quem toca, não esconde assuntos como as malhas do Império, a identificação de um país ou essa inescapável desilusão. (Aqui para nós, que nos ninguém nos lê, emociona-me que inclua Sancho Pança nessa galeria de figuras, pois encontro nela muito do que pode ser um editor). Confirmo, a partir de pistas que já vinha recolhendo, em sala que não pode estar mais cheia por causa do vírus do tempo, que o Luís soube construir uma comunidade de leitores, feita sobretudo de mulheres. Sinto-me privilegiado por dela fazer parte.»

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É assim!

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (16 Junho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, quinta, 3 Julho

A gentileza do Andrea [Ragusa] da Valeria [Tocco] não impediu que me sentisse corpo estranho na evocação dos 150 anos das Conferências do Casino, «Uma aurora à qual não se seguiu dia», distribuída por dois ciclos, este agora e aquele que se seguirá em Outubro. Os convidados são ilustríssimos cultores das Letras, especialistas em Antero e outros visionários, apresentando-se este vosso criado na qualidade híbrida de personagem de banda desenhada e leitor difuso. Com as devidas distâncias e dissemelhanças, um pouco à maneira de Rafael Bordalo Pinheiro, que se fez convidado para aquele plural a que não pertencia até o ter desenhado: «nós tivemos uma visão redentora e de endereita» (assim com ligeiríssimo erro). Falo da extraordinária 7.ª Página «d’um Album humorístico, ao correr do lápis», extraordinário todo ele, momento fundador da narrativa gráfica nacional, logo nas primeiras entregas e com extrema inventividade. O jovem comentador começa como que exclamando no modo de hoje, irritante por se querer definitivo: É assim! Isto é, dá-se logo a dizer, pois desenha-se de punhos na mesa, enfrentando o leitor com um Senhores: a que se segue na linha do desenho dois pontos. Adiante colocará cena entre parêntesis e tratará de pôr, em imagem indelével, um historiador crítico a arrastar gigantescos pontos de interrogação e exclamação, objectos pesados e ao mesmo tempo sustentados no ar. Para o jovem artista, em 1870, a narrativa gráfica era óbvia continuação do texto e o seu comentário, entre o professoral e o humorístico, fixou como poucos o momento das Conferências Democráticas, as que, mesmo interrompidas, não mais deixariam de nos atormentar com o retrato da «purulenta e burguesa physionomia do paiz». Questões volúveis e pesadas. Com as devidas distâncias e dissemelhanças, ainda nos podemos rever nas avaliações daqueles oftalmologistas da civilização que se propunham, apesar da ordem, curar a cegueira com a liberdade. Foi com prazer que regressei a tais páginas e momentos, que estão disponíveis em edições da Biblioteca Nacional. Ao subir para est’A Berlinda, Rafael dava enorme impulso à sua viagem vertiginosa de performer (avant la lettre) definindo programa, temas, estilo e personagens, grupo variado em cujo centro brilhará sempre ele mesmo, em auto-retrato de corpo inteiro. Senhores: jogando-se.»

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Contos da normalidade normal

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (2 Junho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, quinta, 13 Maio

Da primeira vez que li, há umas valentes décadas, este «Fadários», então com outro título, achei-o disperso, algo perdido no que trazia por contar, grávido de todos os «roman noir» e «crime novel» e neo-realistas de pendor surreal lidos à lupa pelo mano José Xavier [Ezequiel]. E soltando como perfume aquele negrume habitual, o melhor amigo do homem lúcido de tão perdido. Ou vice-versa? Agora celebro-lhe esse espalhamento, o sopro com que molda personagens em debandada de si próprios. Se a vida é beco sem saída por que raio nos consumimos em busca de sentidos, proibidos, obrigatórios, para lá dos cinco, antes do significado, além do fado? Ontem como hoje noto nele um levantamento das linguagens, as da língua e do corpo inteiro, que nem halteres ou navalhas, à maneira de Nuno Bragança ou, está claro, de Dinis Machado. E com fulgor que encandeia. Ora o palco só podia ser o Bairro Alto e algumas aortas das bordas, sendo como era o coração profundo de Lisboa. E não havia outra cidade. Nem outras passagens além dos bares. De súbito, sinto o tempo a pesar enquanto converso com a Elisabete [Gomes] por causa das capas, que nesta colecção oscilam entre paisagem e rosto, ainda que em um caso ou outro, a cara se faça lugar. O Bairro foi para mim sinónimo de noite e de conquista, de autonomia e aventura, não este dado adquirido do entretenimento óbvio e da turistagem feroz. Não havia multidões na rua, antes indivíduos espalhados ao comprido no consolo acre da serradura vomitada das tascas e dos bares. A capa deste romance mais negro que a noite escura poderia bem evocar as portas, os riscos de luz, mas não as multidões. Algures na página está hipótese entretanto trocada por outra mais forte (não liguem às gralhas que era esquisso), que faz do balcão o lugar-comum, mas agrada-me por demais o expressionismo destas cabeças perdidas.»

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Portos interiores

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (19 Maio 2021)

«Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 8 Maio
Lisboa não deu pelo novel festival literário 5 L (de língua, literatura, livros, livrarias, leitura). A cidade ansiava por regressar a si, portanto a espreguiçar-se ao Sol, explodindo em milhentos regressos, peças, concertos, gritos e assim.
Mas não aconteceu comunicação e a que existia era de uma dolorosa infantilidade («Ler é fixe», com a mãozinha armada em roqueanrole, a sério?). Alinhámos por razões de amizade e outras estratégicas, contribuindo com Pessoa em cabo-verdiano para deitar a língua de fora ao Dia da Língua; com o nonsense do mano Luis [Manuel Gaspar] para celebrar aquela ideia de cidade que se esvai entre os dedos, como as ruínas da Solmar; com os muitos recomeços que a Ana [Freitas Reis] injecta no sangue dos seus versos. Não consegui deixar de me sentir estrangeiro, ainda que na mesa das funções. Os gestos de encontro saem-nos desajeitados e hesitantes, não nos foi permitida ainda a festa que deve acontecer em cada arremesso, tudo me surgiu deslassado apesar do esforço e alegria dos autores e dos apresentadores, a Inês [Fonseca Santos] e o João [Soares], e até o vírus deu ar de graça ao projectar-se na Linha de Sombra impedindo a Odi Marítimu de levantar âncora.

Lisboa, terça, 11 Maio
O Sporting ganhou. Não foi apenas o futebol, o futsal, o hóquei em patins, o ténis de mesa: venceu as probabilidades, o dinheiro, a má vontade, a descrença, a batota, o anti-jogo, a arrogância, a piadola, o mau perder, as faltas e as faltas de jeito, os velhos do Restelo e de Alvalade. Contra tudo e contra todos, por saber fazer com inteligência e coração, em cada um dos que vestem a camisola, treinador que pensa e sorri, capitão que corta e marca com peito e alegria, no guarda-redes que defende como quem ataca, no sangue e fresco do meio campo, centro da inteligência e do coração, por saber correr e sofrer nas laterais, por se transcender enquanto equipa dentro e fora de campo, por cruzar inteligência e coração. Por ser o clube de Peyroteo e Yazalde, que jogavam com y (na foto da infância), além dos tantos queridos, aparecidos e desaparecidos. E por ser redonda a bola.»

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Apagar a Bedeteca de Lisboa

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (12 Maio 2021)

«Nunca mais voltei ao Palácio do Contador-mor. De vez em quando chegavam-me notícias dos Olivais. Não me lembro de uma boa, mas a minha memória tem vontade própria. Ou tinham tornado as salas de exposição em armazém, uma necessidade imperiosa. Ou tentavam encerrá-la, incendiando a indignação do Ruben de Carvalho, na Assembleia Municipal. Ou desatavam a distribuir os originais em depósito como se aí viessem os bárbaros. Afinal, os bárbaros estavam bem instalados. Nem decidiam nem saíam de baixo. Tanto que entregaram às autoridades sem esboço de resistência livros atentatórios da moral e dos bons costumes. Uma chamada do José Marmeleira desinquietou-me: a moribunda Bedeteca cumpria por estes dias 25 anos e o Público queria saber das razões para o «desaparecimento»
Pensei em pegar em cartaz, newsletter, exposição ou livro e discorrer em direcção ao pôr-do-sol. Pensei em divertir-me desafiando em duelo pequenos e médios funcionários da vida e outros arrotadores de postas de pescada. Pensei em reflectir a fundo sobre a ausência de estratégia cultural em gestão autárquica feita ao sabor de modas. Andando por estes dias a lidar outros fantasmas, por causa de uma ilusão chamada futuro, desapeteceu-me. Mas a conversa perturbou-me a ponto de me fazer espreitar umas fotos e reler uns textos. Hesito em deixar aqui a introdução ao longo relatório que entreguei ou pedaços da carta de despedida, entre recordar o entusiamo dos objectivos ou a emoção do corte com projecto bastamente identitário. Por causa das pessoas, deixo a carta, quase por inteiro.»

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Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (5 Maio 2021)

«Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.
Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”»

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Mão Dita e por dizer

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (21 Maio 2021)

«Horta Seca, Lisboa, quarta, 14 Abril
Abrimos as janelas de cada dia para nos queixarmos do tempo, assim ele nos fosse exterior. Portanto, tenho as minhas razões de queixa. Cada passo dado, cada gesto emitido, cada esforço, as ideias arrancadas pétala por pétala de uma flor por existir, tudo participa no coro de tragicomédia que traz à cena A Grande Avaliação. Sempre detestei exames, antes de perceber que passamos a vida na navalha da examinação. Talvez o momento e o movimento que atravessamos seja agravadamente mais de balanço por tanto conter de desequilíbrio.
Uma vez mais a pretexto de festival, no caso o 5L que se anuncia para Lisboa nos primeiros dias de Maio, depois da falsa partida de 2020, preparamos outros dois volumes da colecção Mão Dita. Nascida por lembrança e insistência do Luís [Carmelo], que acabou por criar a Nova Mimosa para dar resposta cabal às suas ânsias, pretendia ser versão portátil e laboratorial, ensaio súbito, recolha do volátil da voz alta, chamada para tema e trepidação. O grafismo, muito discutido com a Luísa Barreto sublinharia isso mesmo, com os dois pontos de arame e uma capa de intervenção plástica sem mancha de tipografia, sem guilhotinar as sobras que resultam da dobra dos cadernos.
Testámos logo limites com as 82 páginas do «Tratado», do Luís, que chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, com a erudita abordagem corsária dos grandes textos. «Nunca houve inveja do futuro/ na linguagem das aves […] Nunca houve passado/ na linguagem dos homens». O grande leitor enfrenta espelhos e fantasmas, desdobra paisagens e alinha as invenções. Fôlego assim talvez desminta as premissas, mas um laboratório pode ter correntes de ar…
Mais alinhado com as intenções, Felipe Benítez Reyes fez pequena antologia dos seus poemas que tinham partido ao encontro da sombra de Pessoa. A ela voltamos com a tradução para cabo-verdiano da Ode Marítima, pelo José Luiz Tavares – quem mais teria o atrevimento? –, ele que exilou o mar dos seus versos de ilhéu. «A, tudu kais é un sodadi di pedra!/ I óra ki naviu ta sai di kais/ I dirapenti ta odjadu ma abri un spasu/ Entri kais ku naviu/ Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,/ Un nébua di sintimentu di tristeza». («Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/ Uma névoa de sentimentos de tristeza».)»

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