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Tropeçar parado

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (25 Agosto 2021)

Horta Seca, sexta, 6 Agosto

São que nem moscas, as coincidências. De pouco serve sacudi-las (saudades dos verões em que me perdia a vê-las em nuvem no centro das assoalhadas). No exacto momento do reencontro com o Mário [Gomes], o frigorífico que me acompanha desde o século passado resolve resolver-se, como quem diz, desistir. Ora na sequência de uma das conversas com que atravessamos densas planícies e afastadas geografias, lamentando-me eu de não ter atingido a compreensão leitora com o alemão escolar, impedindo-me, portanto, de mergulhar nos seus romances e outras experiências, o Mário propôs-me primeiríssima e prometedora versão de uma «Elegia do Frigorífico». Cruzando ensaio a mostrar costuras e autobiografia a escondê-las, com mestria e ritmo alucinante, interroga-se sobre «o coração da casa», o mais importante dos electrodomésticos da vida moderna (estou confuso, com tanta treva: moderno é hoje?). Será ficção, mas o real exige-nos que os planos se cruzem. São que nem abelhas, as metáforas.

Úteis e quase sempre amistosas. Ou me engano muito ou estará bem conservada em «no frost» esta do frigorífico enquanto modernidade, extensão da habitação, a técnica que conserva a natureza, elemento unificador, termómetro de muitas saúdes. O texto pensa e transpira, o texto ri e dá prazer. O texto desmultiplica-se em micro-histórias, pequenos cubos refrescantes, sonhos. «(Sonho muitas vezes com textos, mas nunca é fácil reconstituí-los depois de acordar. Se me treinasse em sonhos lúcidos, talvez pudesse escrever livros inteiros plagiando os autores imaginários e menos imaginários que escrevem os livros que leio nos sonhos. Seria o crime perfeito.)» A língua resistirá aos ataques de links e hiperlinks? E que uso dá a arte aos móveis do gelo? De que modo vivemos o que habitamos?

«Argumentos contra o frigorífico há muitos, embora não me venha à cabeça nenhum que seja estritamente de ordem estética. Achar que o frigorífico é um objecto pouco bonito, afirmar que não há drama humano no frigorífico, ou suster que antes do frigorífico também nunca houve nenhuma grande obra de arte em que o protagonista fosse um baú ou um lavatório: nada disso são argumentos estéticos, mas apenas o reflexo de falta de sensibilidade. Objecto estético pode ser tudo. Deve ser tudo. Se não andamos sempre às voltas com as mesmas coisas.»

Dei-me por mim, uma noite destas, a lamentar não me ter despedido devidamente – o que quer que isso pudesse ter sido – do Zanussi antes da chegada deste Samsung, redondo a roçar o sensual e sem precisar de produzir massas de gelo para manter o fresco essencial.

Europa, Lisboa, terça, 17 Agosto

O projecto que me riscou o segundo fechamento, o «Diário das Nuvens» (https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/), se por um lado me obrigou a um exercício nunca antes praticado de escrita diária, acabou sendo álibi para o crime exemplar de adiar as tarefas que, apesar do fim do mundo, floresciam assim ervas daninhas. No final daquelas voltas aos 80 dias, sobravam malas por desfazer e roupa para arejar, pdf para carregar e filmes por terminar, de modo a fazer a ligação ao que se seguiria: livro e exposição. A abertura foi depois fissura na barragem e não pararam mais de fluir afazeres em cima da apatia que se erguia montanha rochosa.

Passaram-se meses sem me atrever a voltar ao assunto, aliás, os meses passaram pelos assuntos todos expondo-os em ferida. Até que. Os braços dos moradores de quintos andares estreitaram-se ali a Campo de Ourique, sem batalha nem milagre. Resolvemos resistir à tentação de redefinir o conjunto, limpando arestas, mas com isso perdendo espontaneidade. Dobra aqui, dobra ali, logo o livro e depois a exposição – com primeira e entusiasmante paragem na Livraria de Santiago, em pleno Fólio – ganharam as formas de origami. Para não variar com o João [Francisco Vilhena], lançou-se sobre a mesa cubo de ideias capazes de quebrarem o quebranto, ainda que os planos não parem de brotar em pantagruélico excesso. São mais os olhos que a barriga.

Tomei balanço e fui, então, saltar de nenúfar em nenúfar a ver até onde me mantinha em andamento e para dedicar, já agora, leituras aos objectos capturados e ao que continham de olhar do artista, pois o propósito foi sempre o de entrar na pele e perspectiva das nuvens (estranho não se terem queixado do atrevimento em horas de «cancel culture»). O telefone vibra em descontrolo, ignoro-o com assustadora facilidade e teimo em fixar-me no retrato #70 (algures na página). Que dizer?

«Continua sem prazo de validade a ideia peregrina de que a fotografia se limita a mostrar a bruta realidade, mais real que o real. Tanto nos dá acesso ao que não descortinávamos, no caso do instante pertencer à própria substância do movimento, aquele entre-gestos de que o olho preguiçoso não carece para interpretar a coreografia. E ainda aquela fixidez marmórea permitirá doravante detectar em autópsia os detalhes que nos abrem acesso de corpo inteiro ao que acontece. Pois finge tão completamente que chega a fingir a realidade que deveras vai sendo. Estes tons outonais de souto a celebrar a luz parecem indicar aquele precioso momento do pôr-do-sol. Um dia de cada vez, outra vez. A luz que tomba esvai-se, não indo no real que se esconde no real. Não deixa de conter artimanhas de começos que sobem da raiz do negro aos azuis, os quais, por sua vez, parecem querer dobrar-se sobre andrajos amarelos que fogem, que se soltam, que se desfazem. Que esconde tal comércio das cores entre si e com a luz?

Depois os confins surgem líquidos, indefinidos, insistindo na imaterialidade do conjunto. Alguma vez a pintura se acaba? Se fosse quadro tinha fronteira. Há metafísica bastante e portanto nenhuma em sacrificar a agitação dos afazeres à réstia sublime do desperdício.”

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E esse lado do fim do mundo?

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (7 Julho 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, Domingo longo começado no Sábado, 12 e 13 Junho

Na economia do tempo do micro-editor nunca sobra em quantidade para este lavrar das terras férteis. Estou em crer que o Mário [Gomes] se vai tornando na mais saborosa das fraudes literárias. Por exemplo, o Arno Schmidt nas suas mãos parece ter sido escrito em português, tal a limpidez de cascalho no fundo do riacho que por aqui se ouve. Será Arno extensão de Gomes? Anuncia-se, portanto, «A República dos Doutos – Romance-breve das Latitudes dos Cavalos», delirante “reportagem” ao lugar maravilhoso onde as artes e as culturas viveriam sem preocupações outras que a criação, ilha em movimento dividida por um muro, habitada por seres fabulosos e outros mais reconhecíveis.

Estende-se narrativa (para conforto dos carentes da anedota e outros preguiçosos) e explodirá moral (de agradar às tribos sanguinolentas dos malditos e outros mortos-vivos), mas o essencial está no labor da linguagem, com multiplicação ao infinito de planos, a lúdica recomposição das pontuações e outros sinais, e, sobretudo, o fraseado em pizzicato sobre escórias, imagens potentes, lâminas saltitantes, espinhos de rasgar peles. E por nisso falar, surpreendente erotismo para tão apocalíptico cenário. Certas obras inventam o presente. Se «Leviatã|Espelhos negros» podia ser sido livro de cabeceira durante a pandemia, estas «Latitudes dos Cavalos» continuam a ser ferramenta de ver ao longe, o que nos acontece ao perto. Ao calhas (e desformatado):

«Oh, ainda tem 1 hora ou 2 horas : afinal o fim do mundo é bem perto.» : «Pois, para pessoas como você !» (Pelos vistos ele gostou da resposta; passou a mão pelo bloco de barba maciço e deu um salto em frente, orgulhoso).
Nomes como terramotos ! : um sítio por onde passámos chamava-se ‹Tatara-káll› (e os cascos retumbavam ocos, como que a condizer !). –

Na – enfim, poderemos falar duma ‹aldeia› ? : as poucas cabanas de ramos esgalhados (alguns deles desfolhados até pelos mais famintos ou preguiçosos !). / Todos haviam retomado os seus afazeres, em plena paz : centauros barbudos com gadanhas ceifavam os lameiros. (Um deles, todo silhueta, levantou a garrafa, bebendo; (e eu achei por bem beliscar a minha perna : será que tinha adormecido a ler um livro de mitologia grega, Preller=Robert ?)).

Não ! Nunca na vida ! : uma centaura de óculos era certamente uma novidade (e além disso, mais velha : um balde de ferro com água estirava-lhe o braço : as mais velhas seguravam os seios maiores com ambas as mãos ao galopar. – ’ma fábrica de soutiens. Podia ser um negócio bombástico !).

E todos os nomes, como trovoadas, como lados entrelaçados, como aragem de fogo; como nudez da terra, cadinhos esquentados, ouro picado.»

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