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Dead line

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (3 Fevereiro 2021)

«Aqui há atrasado, em plena primeira vaga do atraso de vida, estava em rica conversa dançante com o querido Manuel [San Payo] à roda dessa linhagem arrepiante da Dance Macabre, e memória puxa desenho (é dele o retrato da dansa ansiada que vai na página), verso puxa música e tombamos no samba. Podia lá ser de outro modo, ainda que haja bandas sonoras para cada gosto e outros tantos desgostos. A gama de tambores, o agogô e o repique, o chocalho e o reco reco, o pandeiro e, sobretudo, a cuíca. Os instrumentos ritmistas parecem ter sido arrancados ao corpo humano, pelo que a batida minimal e circular vem bombada do coração às mãos para ribombar na pele antes de se desfazer em sangue na melodia e na voz. Ou então são mas é do quotidiano, restos de lixo sujeitos à afinação dos que sofrem rindo. Ou vice-versa, que daria bom tema. Interessa-me para o caso este que se evola de episódio concreto às alturas do mais aplicável genérico, o de género humaníssimo. Nasce da vida do lutador-bailarino baiano, Besouro Cordão de Ouro, que canta, via Elis Regina, Baden Powell e Paulo César Pinheiro (versão comovente aqui), o desejo de ser enterrado no quinhão natal, regresso ao útero, portanto. «Quando eu morrer, me enterre na Lapinha/ Quando eu morrer, me enterre na Lapinha/ Calça, culote, palitó almofadinha/ Calça, culote, palitó almofadinha». Isto não ia lá sem sabedoria de arrastar o pé para ganhar balanço e voar. Mais que a culote, comove-me a almofadinha, suavidade de colo para a cabeça. «Vai meu lamento vai contar/ Toda tristeza de viver/ Ai a verdade sempre trai/ E às vezes traz um mal a mais/ Ai, só me fez dilacerar/ Ver tanta gente se entregar/ Mas não me conformei/ Indo contra lei/ Sei que não me arrependi». O lamento que se erga e vá à vidinha da narração cantada, que me deixe ficar aqui a bater copo na mesa, talvez dançando com a amiga do peito tristeza. «Sai minha mágoa, sai de mim/ Há tanto coração ruim/ Ai, é tão desesperador/ O amor perder do desamor// Ah, tanto erro eu vi, lutei/ E como perdedor gritei/ Que eu sou um homem só/ Sem saber mudar/ Nunca mais vou lastimar». Um homem só, despojado de mágoa e tristeza. Homem de um pedido só.»

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Quero é dançar na chuva

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (27 Janeiro 2021)

«Cá está novo fechamento, anunciado à náusea, adiado ao limite. Ainda assim, as ruas não se esvaziam. A catástrofe está instalada à razão de um avião em queda por dia, mas nem isso acende as campainhas histéricas dos telexes virtuais. Ou antes, os alarmes são ignorados, por não querermos acreditar na impossibilidade de se viver como habitualmente. Arde-me a casa, mas na vez de tentar apagar todos os fogos, o fogo, entendo por bem arrumá-la.
Nem isso: escolho um gesto minimal repetitivo e nele me instalo, performance silenciosa no escuro. Melhor faria se observasse os mil modos do gato se espreguiçar, harmoniosas odes à potência do salto.
Parceiro de projectos postos em pausa, o João Francisco [Vilhena] desafia-me para um «Diário das nuvens», desconhecendo ainda assim a minha desmedida e diletante atracção por esses fugidios elementos. Que teriam para dizer essas imemoriais companheiras destes nossos pára-arranca? Um dos muito encantos das ditas massas suspensas de água e poeira está em nada dizer. Somos nós que nelas penduramos estados de espírito, tornando-as vestes da tristeza ou da melancolia. O João envia, a cada dia, fotografia de um caso, jogando com luz, composição e a sua leitura do dia. Estou a vê-lo a bater às portas para poder subir às varandas, aos telhados, identificando-se: «é para contar as nuvens». Para contar das nuvens só mesmo palavras, micro-histórias ao sabor da absoluta liberdade, perseguindo ideia ou descascando palavra, descrevendo objecto ou engendrando situação, observando, dentro e fora. Exercício de felino doméstico, arranhar sofás e espreitar visões do vizinho nenhures. As decisões urgentíssimas que continuem presas na sua desesperança prática. »

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A pretexto do «Diário das nuvens»

Nuvens

Em véspera de novo fechamento, rodeados de desgraças e perplexidades, o João Francisco Vilhena, com quem já estava a desenvolver uma boa mão cheia de ideias, desafiou-me para um «Diário das nuvens». Uma fotografia sua do mais enigmático dos elementos trataria de despertar micro-narrativas.«Era a porta da rua. Não do prédio, mas da rua. O exterior, que costumava ser de todos, vedava-se. A ideia encontrava-se entalada no exacto espaço entre entrada e saída.» Estamos nisto à razão de uma por dia em modo absolutamente libertário, forçosamente melancólico. O João desconhecia «Nuvens», a publicação que fizemos, com o Hoje Macau, para a Feira do Livro de Lisboa, em 2019, pelo que resolvi trazê-la a este céu cerrado. JPC

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Conta-fios

«Não sei bem o que pensar sobre o assunto. O encontro do editor com o autor começa sempre por um texto, mas a expectativa está em que o autor entre nesta casa para a habitar. «Nós não somos do século d’inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d’inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.»
Custa-me trazer para o assunto a palavra trabalho, uma palavralha, mas disso se trata, além dos textos e das suas potencialidades, interessam-me trabalhar com autores para nasçam criações que seriam diferentes sem esse encontro. Daqui mais se poderia desdobrar, assim escadote extensível. Nisto me afasto dos caçadores de tesouros que por aí proliferam. Terão o seu lugar no ecossistema literário, claro, mas procuro outras madrugadas. Uma inesgotável produtividade somada à ânsia de ver papel impresso, faz com que as gavetas transbordem para todas as chancelas e mais uma. Na poesia não há lugares, está visto. E um logótipo pouco mais é. Enfim, o Herberto sofreu ao ler nas suas capas Porto Editora na vez de Assírio & Alvim, mas o homem era excepção. O mais curioso, digamos à falta de melhor palavra, acontece quando a justificação assenta no facto de a abysmo ser editora de casos difíceis.
Aqui te deixo este objecto desafiante, mas vou ali publicar o habitual. Depósito de complicações, não me parece mal como apresentação. Não sei bem o que pensar, mas tomo nota da perturbação que estes trânsitos me causam.
Talvez seja natural, por estes dias de fragmento e ruína, atirar tijolos o mais depressa possível a quantas janelas se possa.»

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (20 Janeiro 2021)

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Visões do inferno e nem tanto

«Queria que acontecesse de modo semelhante, o leitor sem saber ao que vai, recebendo nas mãos um certo «Tom», e no gesto mudando a melodia dos dias. Distraidamente, terá talvez visto as três letras dançando, nos cantos inferiores da convenção. Aqui uma onda, com a linha do t prolongado atirando o redondo o pelos montes do m, delícia de movimento, a mão a fazer da assinatura ponto final. Casos há distintos, em que o t faz de antena e raiz, linha recta procurando profundezas no vazio, as restantes letras um horizonte ainda por estender. E outras declinações ainda nomeiam o produtor das imagens, um entre tantos outros, nem se dá por ele na poeira do tempo.»

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (30 Dezembro 2020)

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Mimosa & Camões, companhia ilimitada

Paredes meias com a segunda sede da abysmo era lugar de matar fomes e sedes. Foi quando a pandemia fechou a Mimosa do Camões que todos percebemos que o mundo e nós com ele havíamos mudado mais do que pensávamos. Durante uns anos valentes, aquelas salas eram prolongamento bastante mais do que físico do que a editora foi sendo. São incontáveis os projectos ali alinhavados, esmiuçados, acrescentados, desvairados, tão só conversados. Os convites endereçados, os sins, os nãos e os talvezes, espalhados sobre a mesa que se estendia para além do tempo. Grandes conversas sobre o tempo a partir dos gregos, da física quântica, dos palcos e de Proust. Aquela sobre a pintura e como nos jogamos nela. A localização exacta do Inferno. Camões foi assunto e destino de partida. Os detalhes do uso de variegadas drogas, desde tempos imemoriais, falas na primeira pessoa, práticas na terceira. Apareciam mágicos, dos que faziam aparecer e desaparecer. Velhos trazendo histórias e vidas pela trela. Moradores das mais distintas paragens. De súbito, ao balcão vozes cavas discutiam a teoria das cordas e o contista não queria acreditar. Aconteceram canções, mesmo que não cantadas. Fado, por uma vez. A concertina amiúde. Golpes de teatro, a dar com um pau. Gargalhadas eram o pão nosso de cada dia. Enormes momentos de futebol, com jogos dentro. E até jantares. Ou almoçares, dos que começavam ao meia dia e acabavam à meia noite, dando nós no tempo. Claro que se semearam poemas, se cimentaram amizades e outras se desfizeram. Ainda recordo o concreto de cada uma. Chorou-se, por ser o apropriado ou sem querer. Longuíssimos testemunhos de vida, gente a despir-se lentamente, locomovendo-se. Quando Herberto Helder resolveu morrer, fechou-se a porta, com a curiosidade jornalística do lado de fora, e fizeram-se leituras noite dentro. Os troféus que fomos recebendo apanharam pó entre as garrafas de Bushmills. Exposições brotaram espontâneas, a das cidades espantou um dos últimos oficiantes do surrealismo. O cruzamento dos transeuntes, dos cansados da viagem, dos ávidos e dos desesperados fez-se fotografia. Tatuagens na pele dos edifícios foram cicatrizando na pele do tempo, ainda ele. Arquitecturas se desdobraram das múltiplas maneiras que são suas, no olhar e no desenho, nos materiais e na prática. Cinema, creio que só ensaiado. Começaram-se romances à mesa, dos escritos também. Há testemunho impresso do imprevisto. Apanharam-se desilusões no ar e pelo toque. Houve despedidas memoráveis, sem percebermos que era para sempre. Cerimónias de boas vindas estenderam-se sem cerimónia maior que o copo e a palavra na mão. Visto de fora, tontos leram e anunciaram orgias, eterna forma de classificar prazeres a que não sabe aceder. Outro avisou para os perigos ameaçadores de um bando de estroinas, capaz de assustar programadores e comissários da tristonha vida literária. Má-língua demora a cozer e deve ser servida com batata por descascar. Em polémica estrangeira, menorizaram autor que cuja sede da editora era em tasco. O coração podia crescer de orgulho, se estivesse para aí virado. Aconteceu alguma coisa? Tenho que vasculhar as toalhas de mesa rabiscadas, desenhadas, manchadas para confirmar. Aqui neste sítio, haverá sempre Mymosa. Haverá tempo?

João Paulo Cotrim

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