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Mimosa & Camões, companhia ilimitada

Paredes meias com a segunda sede da abysmo era lugar de matar fomes e sedes. Foi quando a pandemia fechou a Mimosa do Camões que todos percebemos que o mundo e nós com ele havíamos mudado mais do que pensávamos. Durante uns anos valentes, aquelas salas eram prolongamento bastante mais do que físico do que a editora foi sendo. São incontáveis os projectos ali alinhavados, esmiuçados, acrescentados, desvairados, tão só conversados. Os convites endereçados, os sins, os nãos e os talvezes, espalhados sobre a mesa que se estendia para além do tempo. Grandes conversas sobre o tempo a partir dos gregos, da física quântica, dos palcos e de Proust. Aquela sobre a pintura e como nos jogamos nela. A localização exacta do Inferno. Camões foi assunto e destino de partida. Os detalhes do uso de variegadas drogas, desde tempos imemoriais, falas na primeira pessoa, práticas na terceira. Apareciam mágicos, dos que faziam aparecer e desaparecer. Velhos trazendo histórias e vidas pela trela. Moradores das mais distintas paragens. De súbito, ao balcão vozes cavas discutiam a teoria das cordas e o contista não queria acreditar. Aconteceram canções, mesmo que não cantadas. Fado, por uma vez. A concertina amiúde. Golpes de teatro, a dar com um pau. Gargalhadas eram o pão nosso de cada dia. Enormes momentos de futebol, com jogos dentro. E até jantares. Ou almoçares, dos que começavam ao meia dia e acabavam à meia noite, dando nós no tempo. Claro que se semearam poemas, se cimentaram amizades e outras se desfizeram. Ainda recordo o concreto de cada uma. Chorou-se, por ser o apropriado ou sem querer. Longuíssimos testemunhos de vida, gente a despir-se lentamente, locomovendo-se. Quando Herberto Helder resolveu morrer, fechou-se a porta, com a curiosidade jornalística do lado de fora, e fizeram-se leituras noite dentro. Os troféus que fomos recebendo apanharam pó entre as garrafas de Bushmills. Exposições brotaram espontâneas, a das cidades espantou um dos últimos oficiantes do surrealismo. O cruzamento dos transeuntes, dos cansados da viagem, dos ávidos e dos desesperados fez-se fotografia. Tatuagens na pele dos edifícios foram cicatrizando na pele do tempo, ainda ele. Arquitecturas se desdobraram das múltiplas maneiras que são suas, no olhar e no desenho, nos materiais e na prática. Cinema, creio que só ensaiado. Começaram-se romances à mesa, dos escritos também. Há testemunho impresso do imprevisto. Apanharam-se desilusões no ar e pelo toque. Houve despedidas memoráveis, sem percebermos que era para sempre. Cerimónias de boas vindas estenderam-se sem cerimónia maior que o copo e a palavra na mão. Visto de fora, tontos leram e anunciaram orgias, eterna forma de classificar prazeres a que não sabe aceder. Outro avisou para os perigos ameaçadores de um bando de estroinas, capaz de assustar programadores e comissários da tristonha vida literária. Má-língua demora a cozer e deve ser servida com batata por descascar. Em polémica estrangeira, menorizaram autor que cuja sede da editora era em tasco. O coração podia crescer de orgulho, se estivesse para aí virado. Aconteceu alguma coisa? Tenho que vasculhar as toalhas de mesa rabiscadas, desenhadas, manchadas para confirmar. Aqui neste sítio, haverá sempre Mymosa. Haverá tempo?

João Paulo Cotrim

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