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A mão no rosto

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (29 Setembro 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 13 Setembro

Conhecia este texto, que dança nas profundezas, da Inês [Fonseca Santos], fruto da deliciosa prática da partilha – toma que está maduro, ajuda-me a descascá-lo. Desconhecia o quanto de solar dele extraiu o Mantraste – olha como o cubismo nos permite fazer do fragmento corpo inteiro. E depois ao ser impresso o raio do texto ganha outros tons – será rosto maquilhado? «António Variações – Fora de tom» (ed. Pato Lógico/ Imprensa Nacional), esguio de formas, como todos os da colecção Grandes Vidas Portuguesas, está cantarolando pelas estantes, nas minhas mãos.

Os bem-pensantes, que os há sob cada pedra em todos os quadrantes, insistem no erro de que os livros de putos apenas a eles se destinam e dispensam leituras aos entretanto crescidos. Neste pequeno volume, a Inês e o Bruno dizem tanto sobre a vida de cada um, as vidas dos outros, o peso das palavras, o modo como elas nos abrem ou fecham os dias, falam do que somos se o soubermos ser! Sem condescendências, sem medo de se apaixonar pelo tema, brincando invariavelmente às construções, das caras e dos versos. «Não é em linha reta, o humano», mas há geometrias ocultas, linhas de terra. A fortíssima face do António Variações atravessa o livro por completo, faz-se paisagem e cadeira, dança e ternura, microfone e enxada. Perto, tão perto, passeiam-se as mãos, enormes. Notável a subtileza com que o Bruno insere elementos de uma ruralidade identitária que só o Variações soube tornar cosmopolita – raiz e antena. As convenções, se podem ser casa, tendem a tornar-se prisão. António Variações não deixou ainda de rasgar cantando a liberdade.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 16 Setembro

Andamos nisto, a disparar em todas as direcções assoberbados com estampas e retratos, talvez auto, à velocidade do absurdo. A Festa da Ilustração explode lá para o início do outonal mês e o José Teófilo [Duarte], à queima-roupa, sem apelo nem agravo, pede-me reflexão escrita em torno do labor de misturas da Marta [Madureira]. Travo a fundo as urgências e fecho-me para vaguear nos seus rostos, lado visível de dilectas geometrias: «A colagem tem sido o seu território. O corpo a sua matéria, o seu assunto, a borracha ilimitada com que estica as histórias, ainda que de outros. E nessa estrutura de tronco e membros, a peça principal tornou-se a cabeça. Ou melhor: o rosto.» Amo mãos, a sua dança na atmosfera, a deliciosa relação que estabelecem com a face respectiva. Do gesto nascem caras (algures na página, exemplo virtuoso). Nisto, a colagem a imitar estes dias, feitos disto e aquilo, sobras e princípios sobre uma qualquer folha suja (de calendário). «A Marta desde sempre integrou na sua linguagem fragmentos do mundo, que deixam de lhe pertencer mal pousam sobre a página tornando-se cor, textura, sinal. Uma mola reproduzida tal e qual não prende nada, do mesmo modo que as esferas metálicas se podem tornar olhos de bicho. E até foi fazendo mais, acrescentando dimensões ao plano, ou vestindo de penas e tecidos certos corpos. Um pouco mais de vida em naturezas mortas.»

Horta Seca, Lisboa, sexta, 17 Setembro

Na escala evolutiva, um livro em pdf ou afim, por útil e facilitador que seja, não consegue ainda andar como um livro. O texto, longe dos nossos olhos, combina-se com as imagens, de modos que só a geometria descritiva explicará, e explode em objecto de capa e espada, perdão, página. Dá-se, então, o mistério. Doravante não será mais meu, ou do Tiago [Albuquerque], que o enriqueceu com visões, este «Jean Moulin – A sombra não apaga a cor».

Serão as vidas a terra de onde brotam as histórias? Basta discorrer um percurso para prender leitores a ponto de ignorarem a vida? Esta biografia aventurosa e por um triz banal deu filmes e romances, mas deu sobretudo um rosto, aqui tintado a negro e sombreado de azul. Ecoa ininterrupta a bela frase de Malraux, à beira do Panteão, com o que este contém de abysmo: «Hoje, juventude, pudesses tu invocar este homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele foi o rosto da França.»

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Passado a ferro

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (11 Maio 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 6 Agosto

O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.

Em setembro próximo, cumprir-se-á uma década sobre o momento chão em se imprimiu por primeira vez a palavra abysmo na qualidade de marca e nome. Não era ainda editora, antes brincadeira. (Uma vida inteira a brincar com coisas sérias e depois ainda te admiras, digo eu de mim para mim.) Demorou mais do que um ano para o projecto se impor com a lâmina da pergunta: e por que não? Confesso que por estes dias o fio da navalha diz: para quê?

Chegámos a pensar em escrever isso mesmo para dar cobertura ao esforço que significará abrir um pavilhão na Feira do Livro de Lisboa. Preferimos aniversários que abram para o futuro, ainda que lhe oferecendo as costas, como mandam os antigos, por estarem os olhos no percurso feito. A dúvida venenosa cresce, agravada pelo facto de não ser tempo de festa. Como assinalar a data sem nos deixarmos tragar pelo comemorativismo, invariavelmente rotineiro e bacoco?

Ainda esteve em cima da mesa com o Jorge [Silva], uma frase de cada livro em cadáver esquisito, entre o divertido e o simbólico. Afinal, os muros daquela assoalhada no Parque dirão com singeleza e grito tão só alguns dos títulos que foram sendo experimentados neste longo período, muito longe da totalidade, nem mesmo com o esforço da abrangência. Terão que me perdoar os autores, por instantes e ali sem-título, mas o critério foi quase só a sonoridade, o despertar de um espanto, a estranheza. Há dez anos que andamos a dizer, a fazer nas entrelinhas, sem sair da encruzilhada, em carrossel. Mas cada nome possui voz e luz, que por aí circulam, dando sinal de vida discreta, mas pulsante. Mesmo os esgotados não se esgotaram. Resultam de inquietações, experiências, ânsias, gozos. Nenhum se renega, cada qual mantendo a força de um sentido, ainda que esquecido, sumido ou extraviado. Cada um erguido pelo somatório dos esforços, misto de laboratório e sapataria.

Adiante veremos se o nevoeiro dispersa para mais passos e outra conversa.»

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