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Carga d’água

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (15 Setembro 2021)

Parque Eduardo VII, Lisboa, sábado, 4 Setembro

Vão passeando os numerosos cães e os comentários, uma ou outra palavra de incentivo, mas também piropos grosseiros e passagens ao largo para evitar encontros de maus fígados (as máscaras poupam alguns da má cara).

Quase se perdeu o hábito de saudar quem está ali de pé ao serviço, de súbito transparente. Também se atiram dúvidas que tamborilam com o pó ininterrupto sobre as capas da livralhada: conselhos de leitura, acerca de um autor, de planos, mas a pergunta campeã, de longe, tem a ver com preços baixos e ainda mais descontos, com a adesão à mística Hora H. Tantos anos a inundar mercados com ideias acocorados dá nisto: saldos como modo de vida.

Não páram de crescer, assim eucaliptos, as editoras-taxímetro: pague que nós publicamos, resmas de restolho, sem fogo, mas esperando arder, com autores impantes e abandonados, uns em afogadilho, mas outros em celebração de selfiem-família. O negócio das identidades terá sempre por onde crescer: quem serei eu sem autorretrato ao instante, sem assinatura, sem opinião firme e hirta.

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Prova de vida

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (1 Setembro 2021)

«Eduardo VII, Lisboa, quinta, 26 Agosto

Ei-la que chega, impante, a Feira do Livro. Muito por culpa do comunicado da APEL, que nos atribui estatuto de novedio, o Público (https://www.publico.pt/2021/08/26/culturaipsilon/noticia/feira-prova-vida-editoras-1975265) abre a sua peça connosco e dá azo a um sem número de mensagens, sinceras e fingidas e mais um leque de matizes onde se exercita o humano. Que importância ganham estes detalhes, o de ser a primeira vez que erguemos barraca a solo em evento que nos desgosta e de um jornal apontar lanternas a isso? Pouca. As autoridades alegram-se com a dimensão, atiram números, muitos números, sempre a somar, enchendo bocas e cabeças com o cultural, mas é de comércio que se trata. Vem daí mal ao mundo, que se venda livros? Nem por isso, mas quando toda a estratégia assenta no preço, nos descontos, nos saldos, nos livros do dia, na Hora H, esse convite à especulação, e outras invenções do demónio, acabamos por deixar claro que o interesse não será exactamente a promoção da leitura.

Atraímos passeantes, muitos, muitos, com pipocas e hamburguesas e saladas saudáveis e cerveja artesanal em versão bem-pensante de feira popular. Onde se assinala aqui o movimento emergente das novíssimas pequenas ou nem tanto editoras, nadas e criadas por estes dias de fim do mundo? Por que raio continuam a chamar espaço dos pequenos editores a uma tenda de saldos? Pormenores, de novo, ainda que simbólicos. E nem nos devíamos queixar, pois somos associado silencioso e nada participante, mas não deixamos de reflectir. Enfim, entrámos aos 10 anos de idade, no comunicado e na Feira, graças à crise que baixou a níveis razoáveis o alugar do pavilhão que forrámos com títulos desafiantes.

Diz o fraque e a cartola, façamos montra, cais de vidro, ponto de encontro, partidas e chegadas sem horários, livros-mala-de-viagem, livros-abrigo, livros-navio. Soubera eu como, filmava cada reacção: ao acontecer dos volumes por junto, tantos e tão poucos, as colecções que só se adivinhavam, a riqueza das capas, as que parecem tão antigas quanto as vanguardas, dos ziguezagues e piscadelas de olho ao leitor, sem o estupidificar, convites a entrar no jogo, com «buracos», sem capa, sem letra alguma a não ser na lombada, cores e formatos, volumes irmanados por folha, imagens de um lado e do outro poemas, os que se desdobram, recolhidos em caixa. Leitores das muitas identidades, é entrar, entrar, que temos ainda temas ocultos na voragem, o agreste e o difícil, o melancólico e o resto, imenso e movediço.

Uma década a dizer nas entrelinhas: bons títulos – assim diz o cartão instagramático. Não está acontecendo, mas esta celebração desejava-se menos prova de vida, mais atirada para o renascer do que o soprar das cinzas, mais árvore e, portanto, vergôntea. Quem sabe, se com as chuvas.»

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Passado a ferro

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (11 Maio 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 6 Agosto

O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.

Em setembro próximo, cumprir-se-á uma década sobre o momento chão em se imprimiu por primeira vez a palavra abysmo na qualidade de marca e nome. Não era ainda editora, antes brincadeira. (Uma vida inteira a brincar com coisas sérias e depois ainda te admiras, digo eu de mim para mim.) Demorou mais do que um ano para o projecto se impor com a lâmina da pergunta: e por que não? Confesso que por estes dias o fio da navalha diz: para quê?

Chegámos a pensar em escrever isso mesmo para dar cobertura ao esforço que significará abrir um pavilhão na Feira do Livro de Lisboa. Preferimos aniversários que abram para o futuro, ainda que lhe oferecendo as costas, como mandam os antigos, por estarem os olhos no percurso feito. A dúvida venenosa cresce, agravada pelo facto de não ser tempo de festa. Como assinalar a data sem nos deixarmos tragar pelo comemorativismo, invariavelmente rotineiro e bacoco?

Ainda esteve em cima da mesa com o Jorge [Silva], uma frase de cada livro em cadáver esquisito, entre o divertido e o simbólico. Afinal, os muros daquela assoalhada no Parque dirão com singeleza e grito tão só alguns dos títulos que foram sendo experimentados neste longo período, muito longe da totalidade, nem mesmo com o esforço da abrangência. Terão que me perdoar os autores, por instantes e ali sem-título, mas o critério foi quase só a sonoridade, o despertar de um espanto, a estranheza. Há dez anos que andamos a dizer, a fazer nas entrelinhas, sem sair da encruzilhada, em carrossel. Mas cada nome possui voz e luz, que por aí circulam, dando sinal de vida discreta, mas pulsante. Mesmo os esgotados não se esgotaram. Resultam de inquietações, experiências, ânsias, gozos. Nenhum se renega, cada qual mantendo a força de um sentido, ainda que esquecido, sumido ou extraviado. Cada um erguido pelo somatório dos esforços, misto de laboratório e sapataria.

Adiante veremos se o nevoeiro dispersa para mais passos e outra conversa.»

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