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A amigologia

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (22 Julho 2021)

«Mas agora, mas agora? Tudo me cansa, amigos. Se ouso abandonar por um instante os meus refúgios solitários – a literatura, a filosofia, a música, a fé – sou atropelado pelo que existe. E o que existe é aquilo que o profeta Nelson Rodrigues há muito vaticinou: o triunfo do idiota. Num clima tão extremado como o que vivemos em que a ideia de debate ou da possibilidade do outro começa a ser um ramo de arqueologia é natural que isso possa acontecer.

Mas irrita. Agarradas às circunstâncias sanitárias que vivemos começam a medrar e a ter eco as linhas chalupistas que sempre estiveram latentes: curas através de calhaus judiciosamente esfregados nas costas; desaparecimento de doenças terminais através da meditação ou da convocação de “energias positivas”; diagnósticos através da “aura”; a certeza de que a “Mãe Terra”, bem invocadinha, irá substituir a ciência. E por aí fora.

Cautela: eu não acho que por mais obnóxias que pareçam – e serão – muitas destas “teorias” devam ser dispensadas sem sequer serem ouvidas. Eu tenho o meu Against The Current de Isaiah Berlin aqui ao meu lado e sei bem o que implica a ausência de voz e de resposta. Mas ainda assim.

Então para vos dizer o quê? Que não sou imune. Que também tenho direito às minhas teorias e proclamá-las com a vantagem de não querer discípulos. E num mundo em que se prefere a Humanidade ao humano, a massa ao indivíduo, eis o que vosso oferecer: a amigologia.

Não se trata de uma ciência – se o fosse seria a mais inexacta; não se trata de uma ideologia porque os dogmas não são universais; não se trata de uma arte, porque existe muito para lá do prazer estético. E no entanto é tudo isso e ainda mais baseada no maior risco e privilégio que nos é atribuído: a possibilidade da escolha. A mesma maravilha que nos salva todos os dias é a que nos condena e fere quando as coisas correm mal. E no entanto, e no entanto.»

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A noiva

Luís Carmelo no Hoje Macau (1 Julho 2021)

«Quem os juntou foi uma poeta revoltada que tinha morrido há algumas décadas. Ao fim da tarde, escrevia no céu os traçados certos, ainda que fosse preciso compreender os sinais, domesticá-los, persegui-los tal como se assedia um javali ferido e foragido. E os quatro, o arqueólogo, a actriz, o louco e o fotógrafo, repetiam-lhe efusivamente os versos e passaram a sentar-se à mesma mesa e a beber dos mesmos jarros, logo que reentravam na cidade.
 
A amizade é uma superfície que se ergue debaixo do solo, embora cresça com relativa lentidão, movendo as pás e as mós invisíveis do seu próprio moinho, mas quando o pão se reparte, eis que cada um dos novos amigos pareceria ter encontrado a árvore que lhe estava destinada. Agora perambulavam juntos pela cidade, embora o louco, a quem nunca ninguém perguntara o nome, caminhasse sempre uns cinco metros atrás. O fotógrafo marcava o território com a leica ao passo que o arqueólogo sondava o purgatório, ou seja, a montanha invertida que replicaria em profundidade a elevação onde a urbe se tinha soerguido ao longo dos séculos. Os dois acreditavam que os sortilégios se agarram com a mão, enquanto a actriz decorava palavras de Strindberg e estava plenamente convencida de que a única coisa tangível que existia no cosmos era o seu corpo.
 
Muito cedo, raiava ainda a madrugada, houve um dia em que uma nuvem de pássaros se imobilizou por cima da catedral. E o louco – que viu o acontecido – disse que dentro daquela nuvem de penas estava o pensamento da poeta. O mais perfeito dos casulos aéreos. O arqueólogo, a actriz e o fotógrafo desestimaram a voz do homem, para quem as casas dos botões da sua gabardina eram versos por escrever. No entanto, todos desconheciam que a cidade tinha um segredo: adoraria viver a sós, sem qualquer habitante a habitá-la, a vivê-la, a desflorá-la. Terá sido sempre esse o seu desígnio e apenas o fotógrafo o intuiu, pois, nas fotografias que tirava, raramente aparecia o que antes havia focado. Registavam-se sempre grandes surpresas. As pessoas desapareciam. Talvez a cidade acolhesse agora melhor o pensamento da poeta – ainda que sob a estranha forma de uma nuvem – do que antes tolerara a sua presença física. 
 
Nessa mesma tarde regressaram à floresta e perderam-se uns dos outros. Cada um procurou a sua árvore ao longo de horas e horas. Horas que se fizeram dias e dias que se fizeram meses. O trabalho do fotógrafo foi de longe o mais lento. É sempre difícil encontrar as imagens certas. Bem mais do que determinar a posição exacta no palco, bem mais do que as sondagens que definem o ponto preciso de uma escavação e bem mais do que elevar o zénite da loucura. Mas depois de ter fotografado a maioria das árvores, em quatro delas a revelação deu a ver, não os troncos, as folhagens e a geometria das copas, mas os rostos dos quatro exploradores desta terra a que os antepassados chamavam sempre noiva.
 
Por terem descoberto as suas próprias árvores, os quatro regressaram à cidade para festejar.»

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