Paulo José Miranda no Hoje Macau (8 Julho 2021)
«Também George Orwel, que considera As Viagens de Gulliver um dos melhores livros da história da humanidade e o seu escritor o melhor prosador de língua inglesa, fez acima de tudo uma leitura política deste livro, não deixando de sublinhar a sua excelsa ironia.
Que Swift estava em guerra contra o seu próprio tempo, isto é, contra a organização da sociedade e da política, ao mesmo tempo que nutria um enorme desagrado pelos livros de viagens, pois sabia que eles eram um poderoso veículo de ignorância, são factos inolvidáveis. A organização da sociedade, antes como agora, é corrupta, irracional, e estimula a desenvolvermos o pior de nós, ao invés de procurarmos sermos melhores do que somos, de um ponto de vista ético e científico. E Swift mostrou-nos isso como ninguém, pelo menos até Orwel. Também é verdade que os livros que Swift criticava, tanto ontem como hoje, reproduzem aquilo que as pessoas incultas querem ouvir, isto é, aquelas que não se preocupam em investigar mais acerca daquilo que se pronunciam ou acerca daquilo que lêem. Ao tempo do escritor irlandês, esses livros especulavam acerca de seres e terras estranhas sem qualquer relação com a plausibilidade; ao nosso tempo, especulam formas de auto-conhecimento sem aprofundamento da palavra ou do número, sem um aprofundamento daquilo que somos, como se pudéssemos chegar a nós por determinados gestos ou rituais. Ou os novos livros de viagem, que são as teorias da conspiração. Estes livros não só mantêm as pessoas entretidas com fantasias absurdas como as afastam do conhecimento. Tanto ao tempo de Swift quanto ao nosso. No fundo, aquilo que podemos ver nas montras das grandes livrarias. Jonathan Swift atacou tudo isto de modo implacável. Tudo isto são factos e podemos sem sombra de dúvidas encontrar nos livros de Swift em geral e neste em particular.
Mas aquilo que me parece mais importante neste livro de Swift é do foro ontológico e não político ou social. Talvez mais do que em qualquer outro livro de literatura se possa aplicar literalmente estes versos de Álvaro de Campos:
«O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para dar por isso.» No final do livro, no último capítulo da quarta parte, o narrador, Gulliver, escreve: «Assim, caro leitor, te ofereci a narração fiel da história das minhas viagens durante dezasseis anos e mais de sete meses, relato em que me preocupei mais com a verdade do que com o estilo. Eu poderia, como outros, ter-te causado espanto com histórias estranhas e improváveis, mas preferi relatar fielmente os factos, na maneira e estilo mais simples, porque o meu principal propósito era informar-te, e não divertir-te.» (A edição utilizada em todas as citações é a da Relógio D’Água, na tradução de Luzia Maria Martins, p. 275). Reparem na tripla ironia da passagem: poderia contar histórias improváveis, mas preferiu não o fazer, mas antes contar apenas a verdade. Uma dupla ironia surge porque na verdade as histórias são completamente improváveis, ao mesmo tempo que mostram a verdade; por fim, a terceira parte da ironia aparece quando pede desculpa de não cuidar do estilo, quando a sua prosa é sublime. No fundo, o que Swift nos está a dizer, que faz ao longo de todo o livro, é que o problema dele não é a imaginação, mas a falta de verdade. Imaginação não é contrário a verdade. Ver-se-á adiante aonde isto nos vai levar. »