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A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 6 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (16 Novembro 2021)

«Regressemos então a Kant e ao seu A Religião nos Limites da Simples Razão, porque aquilo que configura o horizonte de Eça de Queirós pode ser respondido tendo em atenção este livro de Kant. Para Kant, as religiões dividem-se em dois grupos: «religião da petição de favor (do simples culto), e religião moral, i. e. religião da boa conduta de vida.» (57) Nas primeiras, o humano bajula o seu Deus para que lhe dê aquilo que precisa. No fundo, aquilo que Kant escreve: «[…] que Deus pode fazer um homem melhor sem que ele próprio tenha de fazer algo mais a não ser suplicar-lhe […].» (57) Isto que, segundo Kant, não se aplica à religião cristã, visto que esta é uma religião moral, aplica-se em Eça de Queirós ao catolicismo, tal como era praticado em Portugal. Ao longo de toda A Relíquia, Eça nos mostra esta relação de bajulação do católico com o seu Deus, através dos santos, das promessas e da superstição. O que está em causa para Kant é que uma religião em que o crente bajula o seu deus não é uma religião que instigue o crente a ser melhor ou a percorrer o caminho do bem, contrariamente àquilo a que o filósofo chama religião moral, que instiga o crente a ser melhor do que é. À página 172 do seu livro, Kant escreve: «Adopto, em primeiro lugar, a proposição seguinte como um princípio que não necessita de demonstração: tudo o que o homem, além de uma boa conduta, imagina poder ainda fazer para se tornar agradável a Deus é simples ilusão religiosa e pseudo-serviço de Deus.» (172)

Para Eça de Queirós, embora por outras palavras, o que está em causa é o mesmo: a hipocrisia do catolicismo, não apenas nas atitudes dos crentes, como sejam o caso da titi, mas também da dos padres, a começar pelo avô de Teodorico e a acabar no padre Negrão. O catolicismo não nos torna melhores. Mais: não exige sequer que sejamos melhores, apenas que aparentemos sê-lo. E ser melhor aos olhos da sociedade. No fundo, o mesmo que acontece em O Primo Basílio e que podemos chamar hermenêutica de cálculo da acção. A saber, há que interpretar a cidade onde estamos, ver o que se esconde sob o manto da aparência e medir, calcular as acções que devemos praticar, de modo a não sermos castigados, nem por nós mesmos, nem pelas convenções sociais da aparência. Exemplarmente mostrado em A Relíquia, não apenas através do aperfeiçoamento da mentira levada a cabo por Teodorico, ou do exemplo final do padre Negrão, mas também através do comportamento da titi. Pois a despeito de toda a sua devoção, a D. Patrocínio estava longe de ser boa ou de ao longo da vida caminhar no sentido de ser melhor aos olhos de Deus. Assim, este capítulo onírico da genealogia do cristianismo, liga-se por inteiro àquilo que é o catolicismo em si mesmo para Eça de Queirós: uma completa mentira. No final desse sonho, vemos que Jesus não ressuscita e que o desaparecimento do corpo é anunciado pela cidade por Maria Madalena, promovendo a ilusão da ressurreição.»

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A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 5 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (9 Novembro 2021)

«Antes de mais, faça-se uma pequena análise à palavra que ele usa «diáfano». É evidente que Eça não usa palavras em vão ou por acaso, muito menos quando se trata de um subtítulo ou de uma inscrição, que pretende seja lido como uma declaração de intenções. Reparem que Eça não escreve «transparente», embora em «diáfano» também se veja transparente. A palavra vem do grego, de «dia» + «phanein» isto é, «através» + «aparecer». É aliás de «phanein» que vêm as palavras fenómeno e fenomenologia. Assim, «diáfano» é aquilo que aparece através de alguma coisa. Não é algo que se deixa ver por si mesmo, mas através de algo. Ou seja, entre nós e aquilo que aparece há um véu. Dizemos «diáfano» quando nos referimos a um objeto ou a um corpo que permite a passagem parcial de luz, mas que não permite que identifiquemos os objetos de modo claro ou nítido. Vemos o suficiente para nos darmos conta de uma presença, mas não o suficiente para o definirmos.

Por conseguinte, o que Eça nos está a dizer não é que a verdade aparece através da fantasia ou a inversão da expressão coloquial «com a verdade me enganas», que ficaria: com a mentira me dizes a verdade. O que Eça nos está a dizer é que há coisas que não podem ser definidas, apesar da sua presença ou que há coisas que não se deixam ver apesar de aparecerem. De outro modo: há coisas que só se vêem com aquilo que colocamos nelas. E também isto nos parece Kant, o modo como o filósofo define fenómeno.»

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A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 4 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (5 Novembro 2021)

«Não há mal sem escolha, sem ter como horizonte um saber-se o que é o bem. Mas o mal radical não é apenas a consciência de se ir contra o que é o bem. O mal radical é uma inversão do bem. O «mal radical» é introduzido no mundo sempre que alguém conscientemente se furta ao bem, se furta àquilo que deveria ser feito segundo a razão, quer seja a morte de uma pessoa, como Raskalnikov em Crime e Castigo, de Dostoiévki, quer seja a de milhões de pessoas, como Hitler e Stalin, ou, muito simplesmente, enganar continuamente a sua tia, como o faz Teodorico Raposo, e encontra justificação para o seu acto. Ou seja, aquilo que é o bem passa a ser visto como algo que tem de ser contornado. No fundo, estamos perante aquela frase popular «vergonha não é roubar, vergonha é ser apanhado».

E este é o ponto de vista de Teodorico. Como escreve à página 63: «Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de tanta boca fidalga, de palmilhar novenas e de magoar os joelhos diante do corpo de um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de Jesus, os braços da Adélia…» Ou à página 41: «Ai, quando chegaria a hora, doce entre todas, de morrer a titi?»

Teodorico Raposo quer parecer à velha tia que é virtuoso, quando na realidade é vicioso. Na verdade, só os prazeres da carne lhe importam, os vícios, o deleite dos sentidos. Mas como está dependente da titi, do dinheiro da tia, cria uma personagem dele mesmo, de forma a poder usufruir do dinheiro da tia e, posteriormente, da sua herança. Veja-se, como exemplo, o que ele fazia depois de estar com a amante Adélia e antes de entrar na casa da titi: «Antes de galgar a triste escadaria da casa, penetrava subtilmente na cavalariça deserta, ao fundo do pátio; queimava no tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota reina; e ali me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris… Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a titi a farejar regalada: // – Jesus, que rico cheirinho a igreja! // Modesto, e com suspiro, eu murmurava: // – Sou eu, titi… // Além disso, para melhor persuadir “da minha indiferença por saias”, coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com selo – certo que a religiosa D. Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escrita por mim a um condiscípulo de Arraiolos; e dizia, em letra nobre, estas coisas edificantes: “Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de Filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito destas ofensas.

Tu lembras-te que já em Coimbra eu detestava tais relaxações. E parece-me de uma grandessíssima cavalgadura aquele que, por causa de uma distracção que é fogo-viste-linguiça, [algo efémero, que se esvai assim como algo ao fogo] se arrisca a penar, por todos os séculos e séculos, ámen, nas fogueiras de Satanás, salvo seja! Ora, numa dessas refinadíssimas asneiras não é capaz de cair o teu do C. – Raposo».»

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A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 1 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (28 Outubro 2021)

Quanto ao romance que aqui nos traz, há quem veja, e não sem razão, A Relíquia como um romance picaresco, na tradição do célebre romance castelhano O Lazarilho de Tormes, de 1554, de autor anónimo. Anibal Fernandes, o seu tradutor para português, descreve deste modo o livro do castelhano: «[…] recusando-se aos excessos verbais que os grandes nomes da literatura espanhola então afagavam; apoiava-se numa coloquialidade não conhecida ou pelo menos rara entre os escritores da época. Era, para ouvidos e sentimentos, de um realismo penetrante em linguagem de povo; uma reconhecível visão parodística da vida que então rodeava os seus leitores: visão da Espanha decadente, empobrecida com a emigração para as Américas e com as guerras, a que suscitava esta crítica de amargo humor a uma nova sociedade de burguesia a nascer, com parasitismos e ociosidades, abundância de deserdados e avessa, por descrença, aos méritos do trabalho.» Sem dúvida, há um claro diálogo entre A Relíquia e O Lazarilho de Tormes, embora A Relíquia não seja um romance picaresco. Lembremos que o título original do livro era A Vida de Lazarilho de Tormes e de Suas Fortunas e Adversidades. Livro também ele escrito na primeira pessoa e através de um anti-herói, como o são todos os protagonistas da comédia. E não nos podemos esquecer que, no universo da escrita de Eça em particular e da escrita lusitana em geral, Teodorico Raposo é um anti-herói por excelência e que Eça conhecia bem O Lazarilho de Tormes e apreciava-o. As relações entre o livro de 1554 e o de 1887 são evidentes. Mas são propositadas e pretendem que o leitor pense e veja essas relações como um diálogo e não como um pastiche.

O diálogo que Eça estabelece com O Lazarilho de Tormes vai muito além do género picaresco. Não apenas pelo terceiro capítulo, mas ao longo de todo o livro. Na realidade, não há picaresco tout court. Veja-se panoramicamente o que se entende por romance picaresco. Trata-se de um romance que, a partir de uma estrutura em episódios e de um relato normalmente na primeira pessoa, procura explicar o estado de desonra do herói, para o qual são determinantes a sua condição e circunstâncias sociais, que aproveita para criticar, usando geralmente um tom satírico e mordaz. O relato é sempre retrospectivo, pois a personagem relata a sua vida desde a infância até ao momento presente em que está a narrar a história, abordando aspectos referentes à sua genealogia, que determinam a sua personalidade, e às condições sociais em que vive.

Na introdução à edição de O Lazarillo de Tormes de Milagros Rodríguez Cáceres, Mário M. Gonzalez, escreve: «Tentar definir o que é um romance picaresco não é tarefa fácil. Um trabalho nesse sentido merecidamente conhecido é o artigo de Claudio Guillén “Toward adefinition of the picaresque”. No entanto, procurando um enunciado mais sintético, propomos entender aqui romance picaresco como sendo a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como um marginal à sociedade, o qual narra suas aventuras que, por sua vez, são a síntese crítica de um processo de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista. O principal traço formal da picaresca é — ao menos no seu início — o seu caráter autobiográfico, ou seja, o narrador de primeira pessoa.»

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A Relíquia, de Eça de Queirós – parte 3 de 8

Paulo José Miranda no Hoje Macau (12 Outubro 2021)

«Segundo Kant há três classes de disposições originárias no humano para o bem: 1) a disposição para a animalidade, que origina a conservação de si mesmo; 2) a disposição para a humanidade, que origina o sentimento de igualdade e, concomitantemente, de obtenção de valorização de si por parte dos outros; 3) a disposição para a personalidade como ser racional, que origina precisamente a reverência à lei moral como lei da razão; é, no fundo, a disposição máxima para a reflexão acerca de si enquanto humano, e humano enquanto ser racional, a disposição que nos dá a consciência da nossa liberdade, a consciência de que somos responsáveis pelas nossas acções.

Reparem que estas disposições não são «naturezas», isto é, destinos, mas horizonte constitutivos do humano. Isto é, não há humano sem estes «constituintes» (palavra de Kant). E precisamente por isso, Kant refere ainda o que acontece quando nestas disposições o vício corrompe a natureza destas disposições. Na animalidade, quando o vício nos corrompe, entregamo-nos à luxúria, à gula e a uma selvagem ausência de lei, que segundo Kant é a não contemplação do outro no horizonte das nossas acções.

Não nos importamos se o outro sai prejudicado, desde que os nossos apetites sejam satisfeitos. Kant chama também a isto o amor de si, no sentido em que a pessoa pensa acima de tudo naquilo que será o seu bem-estar acima, não só do bem-estar dos outros, mas também no prejuízo dos mesmos. Na corrupção da disposição para a humanidade, entregamo-nos à inveja, à ingratidão e à alegria malvada. Com este último, Kant quer dizer «comprazimento no sofrimento alheio».

E do mesmo modo que há três classes de disposições para o bem, há três diferentes graus de propensão para o mal. Repare-se que Kant faz uma distinção entre disposição e propensão. A disposição é constituinte, a propensão é um estar-se predisposto a alguma coisa. Por exemplo, podemos ser predispostos ao alcoolismo, mas nunca chegarmos a beber ou até a controlar essa predisposição. Uma disposição é constituinte, por conseguinte sem possibilidade de não acontecer. O primeiro grau de propensão para o mal deve-se à pusilanimidade, ou, como lhe chama Kant «[…] a debilidade do coração humano na observância das máximas em geral […]» (35) Ou seja, apesar de vermos o caminho do bem, aquilo que deveríamos fazer, por fraqueza não o conseguimos fazer.

O segundo grau é a «impureza», isto é, como escreve Kant «[…] a inclinação para misturar móbiles imorais com os morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem).» (35) Por fim, o terceiro grau de propensão para o mal, segundo Kant, «[…] é a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i. e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano.» (35) Trata-se no fundo daquilo a que Kant chama «perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral a respeito dos móbiles de um livre arbítrio e, embora assim possam ainda existir acções boas segundo a lei (legais), o modo de pensar é, no entanto, corrompido na sua raiz […].» (36)

Não nos causa qualquer dificuldade ver aqui Teodorico Raposo. Que ele seja um homem mau não nos causa quaisquer embaraços ao pensamento, mas como acusá-lo de «mal radical». O mal radical, segundo Kant, não se prende com a gravidade do acto em si, mas com a consciência dele ou, se preferirmos, com a sua premeditação e inversão do sentido moral. Escreve Kant, em A Religião dentro dos Limites da Simples Razão: «Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas; […] deve, no entanto, ser possível prevalecer [sobre o mal], uma vez que ele se encontra no homem como ser dotado de acção livre.» (43) O que está aqui em causa, para Kant, é que, e passo a citar: «Nesta inversão dos motivos, graças à sua máxima, contra a ordem moral, as acções podem, apesar de tudo, ocorrer de modo tão conforme à lei como se tivessem promanado de princípios legítimos […]» (42) É aquilo que vimos hoje acontecer com os bancos, com as offshores, por exemplo. Quando fazemos o mal, conscientemente, mas o justificamos com a lei. É aquilo a que Kant também chama «radical perversidade do coração humano». (43)»

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A Relíquia, de Eça de Queirós – 2 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (28 Setembro 2021)

«O livro, isto é, a narrativa de Teodorico Raposo, começa logo a seguir com esta frase: «Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em teologia, autor de uma devota Vida de Santa Filomena e prior da Amendoeirinha.» (11) É um início irónico, mesmo sarcástico, ao anunciar que o seu antepassado era padre, teólogo, e autor de uma devota obra sobra a vida de Santa Filomena. O tom está dado. E continua. Duas páginas depois, contando muito rapidamente a história do seu nascimento, a partir dos avós paternos, e já depois de nos ter contado que a mãe morrera assim que ele nascera, escreve: «Depois, numa noite de Entrudo, o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra de nossa casa, mascarado de urso […]» (13) A história do fidalgo Teodorico Raposo começa com a relação do avô, que era padre, teólogo e autor de um devoto A Vida de Santa Filomena, com a sua avó, Filomena Raposo, de alcunha a Repolhuda, que era doceira, e a sua ascendência desaparece com o pai a morrer mascarado de urso. Eça de Queirós compõe esta peça na tonalidade de humor. Se o riso é fruto do absurdo do mundo, o humor é a consciência desse absurdo. E o humor é uma forma, talvez privilegiada, de nos pôr a pensar.»

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As viagens de Gulliver – Sétima e última parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (2 Setembro 2021)

«Veja-se então como se dá a aproximação deste livro de Swift à Alegoria da Caverna de Platão. Comece-se pela distinção entre opinião e razão (traduza-se assim o ponto de vista contrário à opinião). Na última parte do livro de Swift, a opinião aparece como apanágio dos humanos e a razão como apanágio dos houyhnhnms. E este povo de cavalos não conseguia compreender sequer como era possível existir a opinião. Não conseguiam compreender porque eram completamente racionais, e segundo a razão não há lugar para a opinião, tal como na filosofia de Platão. O oposto de pensar é opinião, doxa. O mundo da doxa é, na verdade, o mundo das sombras, o mundo dos escravos que vivem acorrentado na caverna, longe da luz do sol, longe do ponto de vista das ideias. Mas aonde é que em As Viagens de Gulliver se dá essa passagem decisiva para a alegoria da caverna de Platão? Aonde a podemos identificar claramente?

Começa no final do capítulo X, quando está anunciado o regresso de Gulliver a casa. Leia-se: «[…] como podia pensar em acabar os meus dias entre yahoos, caindo de novo nos meus velhos hábitos de corrupção por falta de exemplos que me conduzissem e mantivessem no caminho da virtude?» Está aqui identificada precisamente a última parte da Alegoria da Caverna de Platão, a impossibilidade do regresso à caverna por parte daquele que viu a luz do sol, isto é, aquele que viu a realidade do mundo, a realidade das coisas e de si mesmo. Em A República, livro VII, entre 514 a-517 d, Platão introduz a célebre Alegoria da Caverna. Há três momentos fundamentais nesta alegoria: 1) a descrição da situação dos prisioneiros; 2) a libertação de um dos prisioneiros; 3) o regresso do prisioneiro à caverna e ao convívio com os outros prisioneiros.

Veja-se o primeiro momento, que nos configura a situação dos prisioneiros. Eles estão presos com correntes de tal modo que não se conseguem mover, nem a cabeça, de frente para uma parede da caverna; no lado oposto da caverna estão instaladas enormes fogueiras e perto destas há um caminho que liga a caverna à superfície e por onde passam os habitantes da mesma que detêm os prisioneiros. Este caminho situa-se numa posição mais alta do que a dos prisioneiros e os habitantes ao passarem no caminho, devido à luz das fogueiras, projectam as sombras na parede em frente aos prisioneiros. Aqueles prisioneiros sempre estiveram ali, acorrentados, não conhecem outra realidade se não as sombras projectadas na parede e o som que escutam por detrás deles. Assim, eles discutem entre eles as sombras que vêem, prevendo o que se irá passar, analisando o que se passou, etc.. E há entre eles alguém que consegue fazer isso muito melhor do que os outros e é invejado ou admirado pelos outros. É esta a situação dos prisioneiros que, como se vê, não está distante da situação de Gulliver antes de ter encontrado o povo de cavalos. Gulliver, ele mesmo reconhece, embora por outras palavras, que sempre viveu numa espécie de caverna, onde o que via e julgava ser a realidade não passava de sombras.»

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As Viagens de Gulliver – Sexta parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (17 Agosto 2021)

«O que está aqui em causa é a incapacidade de o humano ser coerente com a razão, isto é, de ser racional. A despeito de alguma coisa nos fazer mal, e nós sabermos disso, ou que nos possa vir a fazer mal, nós não a deixamos de fazer ou de ingerir. Ora, segundo o ponto de vista da razão isso é absurdo, uma contradição inaceitável. No fundo, estamos perante aquilo que era o projecto dos estóicos, em que o humano se propunha a agir em concordância com o que pensava. O estóico é aquilo que pensa. Ou seja, contrariamente à maioria das pessoas, o estóico sabe que o tabaco faz mal e não fuma, sabe que não se deve enganar os outros e não engana, sabe que não deve entregar-se às paixões e não se entrega. Para o estóico o conhecimento faz sentido, isto é, o conhecimento que tem do mundo e da mecânica do humano fá-lo agir em concordância com esse conhecimento. Ou seja, o estóico diz «assim devo agir e assim vou agir». Pensamento e vontade unem-se. É o que mais se aproxima de uma filosofia ética racional.

Evidentemente, também poderíamos falar dos epicuristas. Tanto epicurismo quanto estoicismo são filosofias de ascese. Mas estas filosofias ascéticas e racionais advinham, contudo, do conhecimento da mecânica da alma humana. Mais os epicuristas, evidentemente. Será com Kant, na sua Crítica da Razão Prática que a razão se torna um mandamento, isto é, um a priori transcendental, a priori do humano, e não uma consequência do conhecimento da mecânica da alma humana. Ou seja, do mesmo modo que para houyhnhnms ir contra a razão é uma auto-contradição, assim aparece em Kant. O filósofo que mais nos mostra o ponto de vista deste povo de cavalos é precisamente o filósofo alemão de Könisgberg. Aquilo que faz com que não sejamos auto-contraditórios é o que Kant chama imperativo categórico. O imperativo categórico exige que cada um de nós aja apenas segundo uma máxima que possa ser uma lei universal. Exercer uma acção contrária a uma máxima universal, isto é, a uma máxima que seja boa para todos, que não prejudique ninguém, conduz ao absurdo. O exemplo mais conhecido de Kant é também aquele que podemos encontrar ao longo de toda a quarta parte do livro de Swift. Pergunta Kant: «Poderia alguém mentir em seu benefício ou de um ente querido ou em favor de toda a humanidade sem cair em contradição?» A resposta é: «Não, pois a mentira não pode ser uma máxima universal.» O imperativo categórico em Kant é uma forma a priori, pura, independente do útil ou do prejudicial. É uma escolha voluntária racional, por finalidade e não por causalidade. A razão é a condição a priori da vontade. O humano enquanto ser racional que é não pode ir contra o imperativo categórico sem que deixe de ser racional. No fundo, Kant descreve o mundo dos houyhnhnms e não o nosso mundo, que é muito mais próximo dos laputaneanos e dos yahoos.»

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As Viagens de Gulliver – Quinta parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (10 Agosto 2021)

«Quanto ao sentido comportamental e não ontológico podemos ver o modo como Swift nos mostra o desprezo com que os habitantes de Laputa olham Gulliver, por este não ter bom ouvido musical. Leia-se: «Ainda que não me seja possível dizer que me trataram mal nesta ilha, devo confessar que me sentia muito abandonado e, de certo modo, olhado com desprezo. Nem o príncipe nem o povo se mostraram curiosos em relação a qualquer tipo de conhecimento, além da matemática e da música, no que eu me encontrava muito abaixo deles, e era por isso olhado com muita indiferença.» (163) Swift mostra-nos assim algo muito comum no comportamento humano através dos habitantes de Laputa: nós tendemos a desprezar aqueles que não partilham os nossos conhecimentos ou os nossos interesses, ainda que possam até ser mais sábios do que nós. Mesmo julgar que a sabedoria é melhor do que a ignorância, pode ser visto como um modo viciado de nos vermos uns aos outros. Não digo que seja, não estou a afirmar que a ignorância seja melhor ou tão benéfica para a comunidade quanto o conhecimento, estou apenas a afirmar que pode ser visto como um modo viciado, um modo estritamente humano de ver, tal como os habitantes de Laputa em relação a Gulliver. Veja-se esta passagem maravilhosa: «Havia na corte um grande senhor, parente próximo do rei, e por essa razão tratado com muito respeito pelos demais. Era opinião universal que se tratava da pessoa mais ignorante e estúpida que ali vivia. Tinha prestado à coroa serviços eminentes, tinha grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela integridade e pela honra, mas tinha tão mau ouvido para a música que os seus detratores contavam que muitas vezes o haviam visto bater o compasso errado;» (163-4) A despeito do senhor ter grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela integridade e honra, não deixava de ser criticado e alvo de chacota devido ao seu mau ouvido para a música, que era fundamental para os habitantes de Laputa. Quantas vezes não vemos pessoas íntegras e honradas serem alvo de troça devido a não configurarem o ponto de vista da comunidade? O que está aqui em causa nesta apresentação de Swift é o modo como os preconceitos, isto é, aquilo que tomamos por certo e necessário, a despeito de nenhuma prova a favor ou contra, nos impedem de ver o outro com justeza. »

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As Viagens de Gulliver – Quarta Parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (3 Agosto 2021)

«Sim, nós vivemos como se não existíssemos. Vivemos como se tivéssemos de seguir determinadas normas e comportamentos, como se a nossa existência não tivesse nada a ver connosco. Na verdade, de modo geral, nós não existimos, seguimos os outros. Não apenas o que vemos e o que ouvimos, mas também o que achamos que deve ser, sem qualquer investigação acerca do assunto. De modo geral, vivemos naquilo a que Kierkegaard chama de estádio estético da existência. Mas isto não é análise que caiba aqui. O que cabe aqui é que estes estranhos seres viviam num mundo à parte, e precisavam de alguém exterior a eles que os fizesse reparar ou darem-se conta do mundo e, concomitantemente, dos outros ao seu redor. Esta descrição deste estranho povo, se pensarmos bem, não nos é assim tão estranha quanto parece. É bem verdade que não andamos com batedores com varinhas ao nosso lado, a lembrarem-nos de quando temos de falar e de quando temos de ouvir. Mas bem que podíamos ter. Pois na verdade, e é isso que Swift percebe bem, de modo geral o humano está fechado em si mesmo sem prestar real atenção aos outros ou até a si mesmo. Nós na verdade não prestamos atenção a nada. A nossa atenção está continuamente a ser diluída em outra atenção à frente e assim por diante sem que nos detenhamos no que quer que seja. E se isto ao tempo de Swift era completamente claro para ele, nos nossos dias de smartphones e de computadores é escandalosamente visível para todos nós. Este povo somos nós, na verdade, povo esse, que só mais tarde entendemos, é o oposto do povo dos cavalos, na quarta parte do livro.»

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