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A Relíquia, de Eça de Queirós – parte 3 de 8

Paulo José Miranda no Hoje Macau (12 Outubro 2021)

«Segundo Kant há três classes de disposições originárias no humano para o bem: 1) a disposição para a animalidade, que origina a conservação de si mesmo; 2) a disposição para a humanidade, que origina o sentimento de igualdade e, concomitantemente, de obtenção de valorização de si por parte dos outros; 3) a disposição para a personalidade como ser racional, que origina precisamente a reverência à lei moral como lei da razão; é, no fundo, a disposição máxima para a reflexão acerca de si enquanto humano, e humano enquanto ser racional, a disposição que nos dá a consciência da nossa liberdade, a consciência de que somos responsáveis pelas nossas acções.

Reparem que estas disposições não são «naturezas», isto é, destinos, mas horizonte constitutivos do humano. Isto é, não há humano sem estes «constituintes» (palavra de Kant). E precisamente por isso, Kant refere ainda o que acontece quando nestas disposições o vício corrompe a natureza destas disposições. Na animalidade, quando o vício nos corrompe, entregamo-nos à luxúria, à gula e a uma selvagem ausência de lei, que segundo Kant é a não contemplação do outro no horizonte das nossas acções.

Não nos importamos se o outro sai prejudicado, desde que os nossos apetites sejam satisfeitos. Kant chama também a isto o amor de si, no sentido em que a pessoa pensa acima de tudo naquilo que será o seu bem-estar acima, não só do bem-estar dos outros, mas também no prejuízo dos mesmos. Na corrupção da disposição para a humanidade, entregamo-nos à inveja, à ingratidão e à alegria malvada. Com este último, Kant quer dizer «comprazimento no sofrimento alheio».

E do mesmo modo que há três classes de disposições para o bem, há três diferentes graus de propensão para o mal. Repare-se que Kant faz uma distinção entre disposição e propensão. A disposição é constituinte, a propensão é um estar-se predisposto a alguma coisa. Por exemplo, podemos ser predispostos ao alcoolismo, mas nunca chegarmos a beber ou até a controlar essa predisposição. Uma disposição é constituinte, por conseguinte sem possibilidade de não acontecer. O primeiro grau de propensão para o mal deve-se à pusilanimidade, ou, como lhe chama Kant «[…] a debilidade do coração humano na observância das máximas em geral […]» (35) Ou seja, apesar de vermos o caminho do bem, aquilo que deveríamos fazer, por fraqueza não o conseguimos fazer.

O segundo grau é a «impureza», isto é, como escreve Kant «[…] a inclinação para misturar móbiles imorais com os morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem).» (35) Por fim, o terceiro grau de propensão para o mal, segundo Kant, «[…] é a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i. e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano.» (35) Trata-se no fundo daquilo a que Kant chama «perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral a respeito dos móbiles de um livre arbítrio e, embora assim possam ainda existir acções boas segundo a lei (legais), o modo de pensar é, no entanto, corrompido na sua raiz […].» (36)

Não nos causa qualquer dificuldade ver aqui Teodorico Raposo. Que ele seja um homem mau não nos causa quaisquer embaraços ao pensamento, mas como acusá-lo de «mal radical». O mal radical, segundo Kant, não se prende com a gravidade do acto em si, mas com a consciência dele ou, se preferirmos, com a sua premeditação e inversão do sentido moral. Escreve Kant, em A Religião dentro dos Limites da Simples Razão: «Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas; […] deve, no entanto, ser possível prevalecer [sobre o mal], uma vez que ele se encontra no homem como ser dotado de acção livre.» (43) O que está aqui em causa, para Kant, é que, e passo a citar: «Nesta inversão dos motivos, graças à sua máxima, contra a ordem moral, as acções podem, apesar de tudo, ocorrer de modo tão conforme à lei como se tivessem promanado de princípios legítimos […]» (42) É aquilo que vimos hoje acontecer com os bancos, com as offshores, por exemplo. Quando fazemos o mal, conscientemente, mas o justificamos com a lei. É aquilo a que Kant também chama «radical perversidade do coração humano». (43)»

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Valério Romão no Hoje Macau (11 Outubro 2021)

«Eu vinha de Albufeira e fui morar para uma casa típica perto de Santa Apolónia. Quatro quartos – começámos com três, mas pobretanas como éramos, rapidamente prescindimos da sala para dar espaço a outra pessoa –, uma cozinha, uma casa de banho. Vínhamos todos do Algarve. Lisboa era apetecivelmente enorme e havia tudo o que não havia em Albufeira: teatros, cinemas, livrarias, alfarrabistas, a noite com todos os seus espaços e possibilidades, um sem-fim de raparigas bonitas, de amigos por descobrir, de gente com quem traçar tangentes a caminho do trabalho final de curso. Filosofia. Depois do final do curso, não se adivinhava uma saída profissional que não o ensino ou a árida e insegura carreira académica. Felizmente, nessa altura era-se demasiado tonto para equacionar devidamente as consequências. Há coisas que, felizmente, só fazemos porque não sabemos mais.

A casa estava quase sempre desarrumada, a loiça quase sempre por lavar. Cada um retirava com basto nojinho o prato, a faca e o garfo que ia utilizar, lavando-os tão bem quanto sabia para no final da refeição os deixar no lava-loiça, novamente sujos, novamente à espera do desespero do próximo esfomeado. Era uma baderna masculina sem qualquer tipo de romantismo salvífico.

A coisa boa dessa impreparação para a convivência, para a idade adulta e para as coisas dos adultos, fruto também da forma como cada um tinha crescido e sido educado, era a possibilidade de, longe e com medo, cada um se reinventar sem ninguém fosse capaz de fazer luz sobre a inconsistência da criatura face ao seu passado. De repente, tudo quanto eu via reflectido no espelho da minha interioridade – e não gostava – era passível de ser mudado (claro que não o era, mas muita coisa é-o e não o fazemos por conveniência ou medo).»

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Ciclo «O que é a filosofia?»

António de Castro Caeiro em ciclo do Centro Cultural de Belém (2020)

Não há ninguém que não tenha uma «filosofia» e acha-a tão pessoal que a designa «a minha filosofia». Há também quem despreze a filosofia e ache que a filosofia é para «líricos», para pessoas que vivem noutro mundo. Quem pensa assim são pessoas de ação que acham que a filosofia nada tem que ver com a vida. Há também a definição romântica de que todos já ouvimos falar: a filosofia é a amizade pelo saber.
Neste conjunto de opiniões, a positiva, segundo a qual toda a gente tem uma filosofia, a negativa, segundo a qual a filosofia é uma perda de tempo e, finalmente, a romântica, segundo a qual a a filosofia é a procura amiga pelo saber; há já teses filosóficas, interpretações, atitudes, mentalidades, modos de ser.
O que pretendemos fazer é a pergunta «O que é a filosofia?» a alguns protagonistas da história da filosofia. O que com eles faremos é a própria pergunta. Uma boa pergunta, antecipamos já, põe-nos na direção de uma boa resposta. A resposta está em tensão com a pergunta. Uma não existe sem a outra, como veremos. Não pretendemos fazer história, muito menos pôr à prova qualquer tese evolucionista segundo a qual a última versão do que quer que seja é a melhor, a mais adaptada, a que sobreviveu.
A filosofia é uma atividade. Não se tem uma filosofia. Faz-se filosofia, como quando se põe em prática uma possibilidade adquirida. A filosofia é uma possibilidade. E aqui começa já um problema antigo. Não é a possibilidade menos do que a realidade? Não é o possível só uma miragem, uma ilusão? Ou será exatamente o contrário, do ponto de vista humano? Não é o sonho como dizia Valéry que nos distingue dos animais?
A filosofia é uma atividade que procura descobrir a verdade sobre «as coisas», sobre «si próprio», sobre «os outros», sobre «tudo». Os antigos chamavam ao tudo a «vida», «ser». A filosofia de algum modo é a atividade que se preocupa com a descoberta da verdade sobre o ser, o ser que é todas as coisas, o mundo, os outros, eu próprio. Mas é a própria vida a ser que também se revela a nós e nos deixa de quando em vez saber como é que ela é.

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