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A minha poética de Aristóteles

Luís Carmelo, no Hoje Macau (25 Março 2021)

«Ao fim da manhã, o teu amigo José M. Rodrigues chega da academia de arquitectura e senta-se ao teu lado para temperar as névoas que cobrem a ponte levadiça de madeiras claras. Ele é fotógrafo de arte e nas câmaras escuras que lhe conheceste compõem-se anos de luz avermelhada e indagam-se os melhores reveladores. Nesse dia exacto do fim de Fevereiro, corria o ano de 1983, tinhas acabo de imprimir o que viria a ser o teu primeiro romance, um momento histórico, sussurraste.
A passagem do cargueiro que tinha escrito “echo” junto à proa suspendeu a conversa por instantes. Segundos depois, parece que foi agora, levantas os braços no ar como fazem certos pássaros omnívoros que consomem vermes, bagas e frutos de pele lisa. E a resma de folhas dactilografadas, levada por um súbito golpe de vento, sobrevoou toda a esplanada, a estrada, os tampos das mesas e as amarras das casas flutuantes. Uma chuva de letras a pairar sobre todo o quebra-gelo que logo precedeu a feliz etapa de recolecção.
Ninguém na esplanada se furtou à tarefa: um verdadeiro polvo de garimpeiros à cata da pepita de ouro. Voltaste assim a reunir as sílabas, as linhas, as páginas. Terá falado uma única, é verdade. A tua poética de Aristóteles, disseste tu à islandesa, mas ela não compreendeu a graça, nem te ligou patavina (foi de pasmar a brancura da moça que parecia afinal inabitada).
Passado um trimestre sobre esse acontecimento, vendeste a aliança do teu primeiro casamento na loja de penhores para ir à ópera, de novo com o teu melhor amigo. Foi Lohengrin em três actos e, no último, o cisne desapareceu nas águas para logo reaparecer sob a forma de Gottfried, antes transformado em animal por obra de feitiço. Identificaste-te imediatamente com o jovem duque do Brabante (representado por um actor que nunca chegaria a cantar) por mudar de corpo para melhor manter a sua alma.»

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Ciclo «O que é a filosofia?»

António de Castro Caeiro em ciclo do Centro Cultural de Belém (2020)

Não há ninguém que não tenha uma «filosofia» e acha-a tão pessoal que a designa «a minha filosofia». Há também quem despreze a filosofia e ache que a filosofia é para «líricos», para pessoas que vivem noutro mundo. Quem pensa assim são pessoas de ação que acham que a filosofia nada tem que ver com a vida. Há também a definição romântica de que todos já ouvimos falar: a filosofia é a amizade pelo saber.
Neste conjunto de opiniões, a positiva, segundo a qual toda a gente tem uma filosofia, a negativa, segundo a qual a filosofia é uma perda de tempo e, finalmente, a romântica, segundo a qual a a filosofia é a procura amiga pelo saber; há já teses filosóficas, interpretações, atitudes, mentalidades, modos de ser.
O que pretendemos fazer é a pergunta «O que é a filosofia?» a alguns protagonistas da história da filosofia. O que com eles faremos é a própria pergunta. Uma boa pergunta, antecipamos já, põe-nos na direção de uma boa resposta. A resposta está em tensão com a pergunta. Uma não existe sem a outra, como veremos. Não pretendemos fazer história, muito menos pôr à prova qualquer tese evolucionista segundo a qual a última versão do que quer que seja é a melhor, a mais adaptada, a que sobreviveu.
A filosofia é uma atividade. Não se tem uma filosofia. Faz-se filosofia, como quando se põe em prática uma possibilidade adquirida. A filosofia é uma possibilidade. E aqui começa já um problema antigo. Não é a possibilidade menos do que a realidade? Não é o possível só uma miragem, uma ilusão? Ou será exatamente o contrário, do ponto de vista humano? Não é o sonho como dizia Valéry que nos distingue dos animais?
A filosofia é uma atividade que procura descobrir a verdade sobre «as coisas», sobre «si próprio», sobre «os outros», sobre «tudo». Os antigos chamavam ao tudo a «vida», «ser». A filosofia de algum modo é a atividade que se preocupa com a descoberta da verdade sobre o ser, o ser que é todas as coisas, o mundo, os outros, eu próprio. Mas é a própria vida a ser que também se revela a nós e nos deixa de quando em vez saber como é que ela é.

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