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A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 4 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (5 Novembro 2021)

«Não há mal sem escolha, sem ter como horizonte um saber-se o que é o bem. Mas o mal radical não é apenas a consciência de se ir contra o que é o bem. O mal radical é uma inversão do bem. O «mal radical» é introduzido no mundo sempre que alguém conscientemente se furta ao bem, se furta àquilo que deveria ser feito segundo a razão, quer seja a morte de uma pessoa, como Raskalnikov em Crime e Castigo, de Dostoiévki, quer seja a de milhões de pessoas, como Hitler e Stalin, ou, muito simplesmente, enganar continuamente a sua tia, como o faz Teodorico Raposo, e encontra justificação para o seu acto. Ou seja, aquilo que é o bem passa a ser visto como algo que tem de ser contornado. No fundo, estamos perante aquela frase popular «vergonha não é roubar, vergonha é ser apanhado».

E este é o ponto de vista de Teodorico. Como escreve à página 63: «Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de tanta boca fidalga, de palmilhar novenas e de magoar os joelhos diante do corpo de um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de Jesus, os braços da Adélia…» Ou à página 41: «Ai, quando chegaria a hora, doce entre todas, de morrer a titi?»

Teodorico Raposo quer parecer à velha tia que é virtuoso, quando na realidade é vicioso. Na verdade, só os prazeres da carne lhe importam, os vícios, o deleite dos sentidos. Mas como está dependente da titi, do dinheiro da tia, cria uma personagem dele mesmo, de forma a poder usufruir do dinheiro da tia e, posteriormente, da sua herança. Veja-se, como exemplo, o que ele fazia depois de estar com a amante Adélia e antes de entrar na casa da titi: «Antes de galgar a triste escadaria da casa, penetrava subtilmente na cavalariça deserta, ao fundo do pátio; queimava no tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota reina; e ali me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris… Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a titi a farejar regalada: // – Jesus, que rico cheirinho a igreja! // Modesto, e com suspiro, eu murmurava: // – Sou eu, titi… // Além disso, para melhor persuadir “da minha indiferença por saias”, coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com selo – certo que a religiosa D. Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escrita por mim a um condiscípulo de Arraiolos; e dizia, em letra nobre, estas coisas edificantes: “Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de Filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito destas ofensas.

Tu lembras-te que já em Coimbra eu detestava tais relaxações. E parece-me de uma grandessíssima cavalgadura aquele que, por causa de uma distracção que é fogo-viste-linguiça, [algo efémero, que se esvai assim como algo ao fogo] se arrisca a penar, por todos os séculos e séculos, ámen, nas fogueiras de Satanás, salvo seja! Ora, numa dessas refinadíssimas asneiras não é capaz de cair o teu do C. – Raposo».»

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