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As Viagens de Gulliver – Sexta parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (17 Agosto 2021)

«O que está aqui em causa é a incapacidade de o humano ser coerente com a razão, isto é, de ser racional. A despeito de alguma coisa nos fazer mal, e nós sabermos disso, ou que nos possa vir a fazer mal, nós não a deixamos de fazer ou de ingerir. Ora, segundo o ponto de vista da razão isso é absurdo, uma contradição inaceitável. No fundo, estamos perante aquilo que era o projecto dos estóicos, em que o humano se propunha a agir em concordância com o que pensava. O estóico é aquilo que pensa. Ou seja, contrariamente à maioria das pessoas, o estóico sabe que o tabaco faz mal e não fuma, sabe que não se deve enganar os outros e não engana, sabe que não deve entregar-se às paixões e não se entrega. Para o estóico o conhecimento faz sentido, isto é, o conhecimento que tem do mundo e da mecânica do humano fá-lo agir em concordância com esse conhecimento. Ou seja, o estóico diz «assim devo agir e assim vou agir». Pensamento e vontade unem-se. É o que mais se aproxima de uma filosofia ética racional.

Evidentemente, também poderíamos falar dos epicuristas. Tanto epicurismo quanto estoicismo são filosofias de ascese. Mas estas filosofias ascéticas e racionais advinham, contudo, do conhecimento da mecânica da alma humana. Mais os epicuristas, evidentemente. Será com Kant, na sua Crítica da Razão Prática que a razão se torna um mandamento, isto é, um a priori transcendental, a priori do humano, e não uma consequência do conhecimento da mecânica da alma humana. Ou seja, do mesmo modo que para houyhnhnms ir contra a razão é uma auto-contradição, assim aparece em Kant. O filósofo que mais nos mostra o ponto de vista deste povo de cavalos é precisamente o filósofo alemão de Könisgberg. Aquilo que faz com que não sejamos auto-contraditórios é o que Kant chama imperativo categórico. O imperativo categórico exige que cada um de nós aja apenas segundo uma máxima que possa ser uma lei universal. Exercer uma acção contrária a uma máxima universal, isto é, a uma máxima que seja boa para todos, que não prejudique ninguém, conduz ao absurdo. O exemplo mais conhecido de Kant é também aquele que podemos encontrar ao longo de toda a quarta parte do livro de Swift. Pergunta Kant: «Poderia alguém mentir em seu benefício ou de um ente querido ou em favor de toda a humanidade sem cair em contradição?» A resposta é: «Não, pois a mentira não pode ser uma máxima universal.» O imperativo categórico em Kant é uma forma a priori, pura, independente do útil ou do prejudicial. É uma escolha voluntária racional, por finalidade e não por causalidade. A razão é a condição a priori da vontade. O humano enquanto ser racional que é não pode ir contra o imperativo categórico sem que deixe de ser racional. No fundo, Kant descreve o mundo dos houyhnhnms e não o nosso mundo, que é muito mais próximo dos laputaneanos e dos yahoos.»

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