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As Viagens de Gulliver – Terceira Parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (20 Julho 2021)

«Jonathan Swift mostra-nos que estamos sempre num contexto prévio, de uma escala prévia com a qual medimos o mundo em que somos. Séculos mais tarde, Heidegger dirá que antes de mais nós estamos lançados no mundo, agimos nele sem pensar. Nós usamos as coisas do modo que estamos habituados a ver serem usadas. Não perguntamos, não pensamos. Só o fazemos quando algo corre mal, isto é, quando o usual é interrompido.

Imaginemos que se trata da fechadura de uma porta ou de uma torneira de água, nós usamo-las sem nos perguntar pelo seu funcionamento ou questionarmos o seu fabrico ou eficácia, só quando elas não abrem, isto é, quando deixam de se comportar como usualmente, é que somos obrigados a pensar nelas, a perguntar por elas e pela relação que se estabelece entre nós e as fechaduras e as torneiras. Mas isto que acontece em relação às coisas também acontece em relação a nós, àquilo que pensamos de nós. E é isso que lemos em as duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver. É quando o ponto de vista usual é interrompido que ele se dá conta do seu ponto de vista usual.

O que acontece em relação às coisas, acontece também em relação ao pensamento, como podemos ver neste exemplo em Liliput. Leia-se: «Mostrou-se admirado do barulho contínuo que o relógio fazia. Assim como dos movimentos do ponteiro dos minutos, que ele conseguia perfeitamente ver – a visão deles é muito mais penetrante do que a nossa –, e pediu as opiniões dos eruditos, que foram diversas e vagas, como o leitor pode muito bem imaginar sem que eu as repita […].» (33) Acerca do relógio é também deliciosa a parte em que os lilliputianos se inclinam a pensar tratar-se de um deus. Reparem que eles interpretam a relação de Gulliver com o relógio como sendo oracular. Leia-se: «Chamou-lhe o seu oráculo, dizendo que indicava o tempo para todas as acções da sua vida.» E nós só não vemos assim um relógio porque nos habituamos ao seu uso, à sua utilidade. Repare-se também como os liliputianos não acreditavam que o mundo pudesse ser à nossa altura, à altura de Gulliver, pois nada nos seus livros o dizia. Leia-se: «Ouvimo-lo afirmar que há outros reinos e estados no mundo, habitados por seres humanos tão corpulentos como o senhor, mas os nossos filósofos mostram-se duvidosos, e preferem pensar que veio da Lua ou de uma das estrelas […]. Além disso, as nossas histórias oficiais, que abrangem um período de seis mil luas, não mencionam quaisquer outras regiões que não sejam as dos dois grandes impérios de Lilliput e de Blefuscu [o reino rival e inimigo].» (44) Como vêm, tal como nós, os lilliputianos têm dificuldade de imaginar o que não sabem, de aceitar o que não se sabe. Preferimos não saber a aceitar uma realidade diferente. Preferimos a ignorância de um texto escrito quando nada se sabia a aceitar a verdade. A verdade é difícil. Só aceitamos a verdade se ela já tiver sido escrita, se ela nos assentar bem, como um fato feito à nossa medida. Nós estamos configurados, não apenas com o aparelho sensitivo que temos, visão, olfacto, etc., mas também configurados pelo que sabemos. Estas duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver são uma viagem ao humano, ao modo como na realidade estamos completamente condicionados não apenas pelos nossos sentidos, isto é, pelo nosso equipamento sensorial de captação da realidade, mas também pelo que sabemos ou julgamos que sabemos.

Neste sentido, as duas primeiras partes do livro depõem-nos face a face com a nossa natureza, através de duas viagens a países completamente opostos na escala: um onde somos gigantes outro onde somos homúnculos. É neste confronto, nesta contraposição de escalas que Gulliver se dá conta de si mesmo e do humano, de que nós somos completamente relativos, isto é, que aquilo que sabemos e valorizamos só o fazemos porque estamos presos, configurados a uma escala precisa.»

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As Viagens de Gulliver – Segunda Parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (13 Junho 2021)

«A diferença de tamanho entre nós e os liliputianos, muito menores, ou entre nós e os brobdingnaguianos, muito maiores, não configura apenas uma diferença de escala, mas uma diferença de visão do mundo. De outro modo, a diferença de escala faz com que nos demos conta de que a nossa visão do mundo depende da nossa escala.

Para além deste nosso modo de nos relacionarmos com o mundo circundante, com aquilo que usamos no dia a dia, há também o modo como nos relacionamos connosco mesmos e com os outros. E isto espoleta com muito mais força na segunda parte do livro, em Brobdingnag, porque somos mais sensíveis a perceber as diferenças quando corremos risco de vida ou somos mais vulneráveis.

Por isso mesmo, e não é por acaso, somente na segunda parte do livro Gulliver diz estas palavras: «Sem dúvida alguma, os filósofos têm razão quando nos afirmam que nada é grande ou pequeno senão por meio de comparações» (p. 82) Apesar de se ter dado conta da diferença de escala em Liliput, ele não era vulnerável, ou pelo menos não era vulnerável como o é em Brodingnag. Mais do que em Liliput, é agora em Brodingnag, que ele se dá conta de que o ponto de vista em que estamos usualmente é relativo. Aquela frase, logo no início da segunda parte do livro, aparece quando Gulliver chega a Brobdingnag e se lembra de si no país dos lilliputeanos. Há uma reconfiguração do plano, uma reconfiguração do ponto de vista. Antes, em Lilliput, ele era um gigante, agora a situação inverteu-se, os gigantes são os outros e ele sente aquilo que os lilliputianos deveriam ter sentido com ele, mas que lhe estava completamente vedado. No fundo, o que aqui está em causa, é que nós mesmos só conseguimos nos ver se acontecer uma catástrofe, isto é, um rompimento com o ponto usual em que estamos. Curiosamente, nas viagens que fazemos usualmente o que acontece é que nós reparamos nos outros, nas diferenças, e é isso que acontece com Gulliver em Lilliput. Ele enumera as diferenças, quase comicamente, mas agora, em Brobdingnag, ele apercebe-se dele mesmo. E apercebe-se dele mesmo através da comparação com a sua vivência em Lilliput. Literalmente, ele foi virado do avesso. Viu-se por dentro.»

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As Viagens de Gulliver – Primeira Parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (8 Julho 2021)

«Também George Orwel, que considera As Viagens de Gulliver um dos melhores livros da história da humanidade e o seu escritor o melhor prosador de língua inglesa, fez acima de tudo uma leitura política deste livro, não deixando de sublinhar a sua excelsa ironia.

Que Swift estava em guerra contra o seu próprio tempo, isto é, contra a organização da sociedade e da política, ao mesmo tempo que nutria um enorme desagrado pelos livros de viagens, pois sabia que eles eram um poderoso veículo de ignorância, são factos inolvidáveis. A organização da sociedade, antes como agora, é corrupta, irracional, e estimula a desenvolvermos o pior de nós, ao invés de procurarmos sermos melhores do que somos, de um ponto de vista ético e científico. E Swift mostrou-nos isso como ninguém, pelo menos até Orwel. Também é verdade que os livros que Swift criticava, tanto ontem como hoje, reproduzem aquilo que as pessoas incultas querem ouvir, isto é, aquelas que não se preocupam em investigar mais acerca daquilo que se pronunciam ou acerca daquilo que lêem. Ao tempo do escritor irlandês, esses livros especulavam acerca de seres e terras estranhas sem qualquer relação com a plausibilidade; ao nosso tempo, especulam formas de auto-conhecimento sem aprofundamento da palavra ou do número, sem um aprofundamento daquilo que somos, como se pudéssemos chegar a nós por determinados gestos ou rituais. Ou os novos livros de viagem, que são as teorias da conspiração. Estes livros não só mantêm as pessoas entretidas com fantasias absurdas como as afastam do conhecimento. Tanto ao tempo de Swift quanto ao nosso. No fundo, aquilo que podemos ver nas montras das grandes livrarias. Jonathan Swift atacou tudo isto de modo implacável. Tudo isto são factos e podemos sem sombra de dúvidas encontrar nos livros de Swift em geral e neste em particular.

Mas aquilo que me parece mais importante neste livro de Swift é do foro ontológico e não político ou social. Talvez mais do que em qualquer outro livro de literatura se possa aplicar literalmente estes versos de Álvaro de Campos:

«O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para dar por isso.» No final do livro, no último capítulo da quarta parte, o narrador, Gulliver, escreve: «Assim, caro leitor, te ofereci a narração fiel da história das minhas viagens durante dezasseis anos e mais de sete meses, relato em que me preocupei mais com a verdade do que com o estilo. Eu poderia, como outros, ter-te causado espanto com histórias estranhas e improváveis, mas preferi relatar fielmente os factos, na maneira e estilo mais simples, porque o meu principal propósito era informar-te, e não divertir-te.» (A edição utilizada em todas as citações é a da Relógio D’Água, na tradução de Luzia Maria Martins, p. 275). Reparem na tripla ironia da passagem: poderia contar histórias improváveis, mas preferiu não o fazer, mas antes contar apenas a verdade. Uma dupla ironia surge porque na verdade as histórias são completamente improváveis, ao mesmo tempo que mostram a verdade; por fim, a terceira parte da ironia aparece quando pede desculpa de não cuidar do estilo, quando a sua prosa é sublime. No fundo, o que Swift nos está a dizer, que faz ao longo de todo o livro, é que o problema dele não é a imaginação, mas a falta de verdade. Imaginação não é contrário a verdade. Ver-se-á adiante aonde isto nos vai levar. »

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A morte de um apicultor – parte 3 e última

Paulo José Miranda no Hoje Macau (29 Junho 2021)

«Podíamos com toda a segurança apresentar «A Morte de um Apicultor» como um grande livro de porquês. Mesmo quando as frases nos aparecem em forma de sentenças, actuam dentro de nós como perguntas. Veja-se o caso das frases do capítulo V, que tem o título «Quando Deus acordou». A primeira diz: «Em vez dele, havia uma mãe.» (165)

Em vez dele o pai. A ideia de Deus ser uma mãe põe-nos a pensar. Não é Deus ser uma mulher, pois isso não é nada de novo, é Deus ser uma mãe ao invés de um pai. Se Deus fosse uma mãe, a humanidade estava como estava? A outra frase, e é a que fecha este mesmo capítulo V: «Se Deus existe tudo é permitido.» Frase que inverte a posição de Dostoiévski em Crime e Castigo, se bem a que ele não o diga «ipsis verbis». Mas mais interessante ainda é a frase anterior, que a língua começou a morrer. Num mundo perfeito a linguagem não faria falta. Gustaffson está claramente a dizer-nos que a linguagem é aquilo que mais nos magoa, sendo ao mesmo tempo aquilo que nos define e nos permite a criação de todos os símbolos que nos ajudam na pragmaticidade da vida. E, obviamente, num mundo onde a linguagem desaparece, a última frase teria de ser, sem margem para dúvidas: Se Deus existe tudo é permitido. Esta frase tem de ser lida à luz da esperança. Tudo pode ser, num mundo onde se possa voltar para trás.

Onde se consiga inverter o tempo. No fundo, deus é esperança. Aquilo a que chamamos deus poderíamos chamar esperança, e assim passamos a vê-lo melhor.»

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A morte de um apicultor – parte 3

Paulo José Miranda no Hoje Macau (26 Junho 2021)

«De qualquer modo, um casamento acaba sempre por encontrar as suas próprias leis. Veja-se como o narrador descreve o seu: «Saber mais do que os outros era uma maneira de ficarmos ligados um ao outro. // E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, sem grande sensualidade, mas de um modo confortável. Sentíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado e que, por causa dessa solidão, tinham algo em comum e deixavam de ser solitários. Mantermo-nos juntos, a Margareth e eu, era uma forma de dizer.» (63) Outro modo substancial de nos pôr a ver o mundo como usualmente não vemos prende-se com a aquilo que escreve acerca das abelhas. Leia-se: «A morte de um enxame sente-se quase como a morte de um animal. É uma entidade que deixará saudades, como se fosse um cão, ou, pelo menos, um gato. // Mas a morte de uma abelha deixa-nos completamente indiferentes. Deitamo-la no lixo, e já está.» (19)

Esta passagem é absolutamente estonteante. Gustaffson mostra-nos aqui duas coisas extraordinárias e distintas. Primeiro, não é que nas abelhas o colectivo é que importa e não o individual, mas como isso nos faz pensar imediatamente no ser humano. Ele não fala do humano, mas obriga-nos a pensar nele, ao descrever tão clara e categoricamente a distinção entre colectivo e individual, entre enxame e abelha. Aliás, mais tarde, no segundo capítulo, escreverá: «(“A mim próprio”, “eu próprio”: hoje em dia. Acho esta expressão absurda. Não tem conteúdo.

Mas não consigo explicar bem.)» Este não consigo explicar é fundamental ao longo do livro. Nós não conseguimos explicar bem as coisas, não só aquilo que está fora de nós, mas também aquilo que está em nós. Por conseguinte, por que carga de água um romance teria de ser capaz de explicar? O que melhor pode fazer é mostrar, no sentido de Wittgenstein, na célebre distinção entre mostrar e dizer. Escreve o filósofo que nós podemos dizer aquilo que pode ser explicado, aquilo que pode ser colocado em uma proposição lógica. O que não pode ser colocado em uma proposição lógica deve ser mantido calado, em silêncio. Ou então, mostrar. Mostrar é a função da arte. Através da arte podemos mostrar o que nos acontece, mas através da lógica, não. Seja como for, naquela distinção entre enxame e abelha e mais tarde a incompreensão do «eu próprio», Gustaffson faz-nos pensar em tudo isto. Em tudo isto e muito mais que não consigo explicar bem.»

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A morte de um apicultor – parte 2

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (15 Junho 2021)

«A esperança não tem como horizonte de sentido um futuro melhor, mas um presente alargado ou um passado alargado. A esperança é acima de tudo a expressão de uma vontade de que as coisas voltem ao normal. E voltar não é para a frente, é para trás. Quando alguém diz «tenho esperança que a minha mãe melhore» mais do que reportar-se a um futuro, está a reportar-se a um passado, a um tempo em que as coisas eram normais, a um tempo em que não havia doença. Parece haver uma ideia de futuro, mas na verdade é uma esperança de que tudo volte a ser como era.

No fundo, a esperança é um mecanismo que transforma um adulto em criança. O medo da criança não é o medo do adulto. O medo da criança, a mais das vezes é imaginário; o medo dos adultos é concreto, enraizado em factos. A esperança ao transformar o adulto em criança, altera-lhe também os medos. Um cancro já não é mais um conjunto de tecidos a degradar-se a matar-nos por dentro, passa a ser uma coisa desconhecida que assim como apareceu, pode desaparecer. Escrever um livro pode fazer desaparecer essa coisa desconhecida, Deus pode fazer desaparecer essa coisa desconhecida. O desconhecido, para desaparecer, só precisa de imaginação. Repare-se como quase no final do livro Gustaffson define o humano como um ser que balança entre a animalidade e a esperança. (168) Não é entre a animalidade e o espírito, porque espírito não sabemos bem o que é. É entre a animalidade e a esperança. Ou, se preferirem, entre a animalidade e o anseio de transformação do tempo. Aliás, não podemos esquecer a última frase do livro: «Podemos sempre esperar.»

E de que modo é que podemos analisar o estribilho que percorre todo o livro: «Recomeçamos, não nos rendemos.» De outro modo, podemos ligar este refrão à esperança ou há algum modo em que se ligue este refrão e a esperança? Não se liga. Ou, pelo menos, não se liga de imediato, sem que antes mostremos os outros centros gravíticos desta obra.

E um desses centros gravíticos, que melhor nos pode iluminar o refrão do livro, é precisamente aquilo a que podemos chamar «a máquina de fazer perguntas inusitadas». Gustafssonn mostra-nos que escrever é, acima de tudo, arriscar o pensar. Pôr o pensamento em risco, ir além daquilo que pode ser feito em filosofia ou em ensaio.»

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A morte de um apicultor

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (8 Junho 2021)

«Esta será a primeira de quatro partes à volta de um livro do escritor sueco Lars Gustaffson, «A Morte de um Apicultor». A edição usada nas nossas citações é a da editora Marcador, na tradução de Mélanie Wolfram e Afonso Cruz. A seguir às citações, entre parêntesis, aparece o número de página desta edição. A edição original é de 1978.

Estamos perante um livro «sui generis», por várias razões. Primeiro, porque se trata de um livro composto por 3 cadernos, de cores e temáticas diferentes, deixada por um professor primário, que nos conta a história a sua história, embora tenha sido organizada por uma outra pessoa, que é quem começa a narração do livro. Como se o escritor se colocasse de fora do que está a escrever e nos dissesse: isto que vão ler não fui eu que escrevi, apenas organizei. De imediato, faz-nos lembrar de uma peça famosa de Pirandello, Esta Noite improvisa-se, onde no início é o encenador que vem ao palco, não para desculpabilizar-se, como faz Gustaffson no início do livro, mas para dizer que aquilo a que os espectadores vão assistir não é da responsabilidade do escritor Luigi Pirandello, mas dele, o encenador.

Embora ao contrário, com uma estratégia inversa, estamos perante o mesmo artifício: a de fazer com que o escritor não seja o foco da atenção do leitor ou espectador. Embora o problema da dificuldade de identificação do que é real e do que é ficção seja muito maior em Pirandello do que no escritor sueco, pois a obsessão filosófica primeira de Gustaffson é a linguagem. E adiantei-vos uma citação: «Contrariamente ao que acontece com a percepção das cores, a linguagem não desenvolveu palavras específicas para definir as sensações das dores. Elas não têm nome.» Faltam-nos palavras, não apenas para nos expressarmos, mas para nos conhecermos. Ainda nos falta palavras para sabermos quem somos. Isto sempre foi uma preocupação maior do filósofo Wittgenstein. E estas preocupações no livro de Gustaffsson alargam-se no terceiro capítulo, «A Infância», onde o narrador lembra várias expressões que ouvia na infância, em reuniões familiares, e analisa-as para além do esperado, isto é, escalpeliza as expressões tentando mostrar o que está de facto por detrás daquelas frases que são repetidas quase sem se pensar nelas. Dou alguns exemplos: «para cúmulo da desgraça»; «uma pessoa que eu cá sei» ou «é sempre a mesma merda». Quase no final do terceiro capítulo «A infância», lê-se: «Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Mas além da questão do entendimento ou não entendimento da linguagem, Gustaffson liga o uso compulsivo dela, o estarmos sempre a falar como uma espécie de procura de redenção ou, pelo menos, um acreditar que alguém nos ouve. Que alguém nos ouve sinceramente. Leia-se: «Liberta a humanidade sofredora /

Mas primeiro liberta-me a mim, porque fui quem sofreu mais. / Basta apanhar o eléctrico durante uns quilómetros para perceber a situação. E não conseguirem queixar-se de nada, queixam-se das suas sagradas doenças, das dores dos joelhos, das pedras dos rins, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das diarreias ou das fezes duras como rochas, que fazem barulho ao bater no fundo do penico. / E enquanto falam disso, imaginam que alguém lhe dá importância, só por se queixarem.»

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A Máquina do Romance

Paulo José Miranda no Hoje Macau (1 Junho 2021)

«Tudo isto é conhecido e reconhecido. Mas aquilo que me traz aqui hoje é um livro pouco conhecido de Helder Macedo – um dos seus ensaios –, intitulado «A Máquina do Romance», de 1989. Era como se esse livro anunciasse tudo aquilo que o autor iria fazer depois na prática, isto é, nos seus romances. Na realidade, «A Máquina do Romance» é o livro mais helderiano de todos os livros de Helder Macedo, apesar de, à distância, nem parecer ter sido escrito por ele. Mas este pensamento assalta-nos apenas superficialmente. É sabido que os romances de Helder mais do que construir uma imagem, tornam todas as imagens em palavras. Talvez não seja certo dizermos que nos romances de Helder uma palavra vale mil imagens, mas é seguro dizermos que uma frase vale mil palavras. Um acontecimento vira uma frase, uma história vira um parágrafo, uma vida vira um capítulo, o universo um romance. Em «A Máquina do Romance», Helder escreve, à página 34: «O romance torna tudo o que toca em romance. Quer sejam pessoas, edifícios, países, obras de arte, óperas, filmes, tudo o que o romance evoca passa a ficar parte dele. O universo não tem parte de fora.
No universo não há lado de fora e lado de dentro, tudo é lado de dentro. E assim acontece com o romance. O romance não tem lado de fora. Aquilo a que chamamos intertextualidades não passa do modo de ser natural do romance. Tal como no universo, no romance tudo é intertextualidade.»»

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Não é nada pessoal, só não gosto de ti

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (25 Maio 2021)

«À primeira vista, poderíamos ser levados a pensar num desses novos livros de erótica de segunda categoria, ainda que tenha sido publicado antes, mas a verdade é que o uso da linguagem em relação aos actos sexuais vão além da descrição. Como ela mesma disse numa entrevista à New Yorker: «Tentei usar a linguagem de modo a que o que acontecesse entre Rebecca e Oliver mostrasse a alma, mais do que o corpo ou os corpos.» E na verdade não me parece que ela esteja longe disso. Leia-se uma extensa passagem onde isso acontece: «O amor transformava-se numa enorme e contínua negação. Um enorme NÃO a envolver-lhes os corpos, os beijos, os gestos, os sons… Tudo era permitido. Rebecca permitia tudo, excepto acabar. Tudo era permitido excepto o que ele queria. Porque Oliver não sabia o que queria. E quem não sabe o que quer, não pode ter em suas mãos o poder de decisão. Depois os seios, breves, macios, como se a idade dela não fosse vinte e cinco anos, mas de uma ninfa, de uma musa à entrada da puberdade. As ancas com duas ligeiras curvas, duas vírgulas onde o seu corpo era uma pequena oração intercalada. A pele de seda das pernas, o interior das pernas, o interior do mundo, do início do mundo. E o sexo tão estreito, como uma vida humana no universo, que o medo de dor, em ambos, aflorou no rosto deles, nos olhos perdidos em que se viam, em que tentavam encontrar-se. O rabo dela, só por si era um poema, um hakai. Não teve como o engenheiro não se afogar de amor. E quantas vezes não encostava o seu rosto largo ao rosto estreito dela, suavemente, como um beija-flor junto a um girassol, apenas com a intenção de se salvar! E ela nunca gritava, não fazia sons exagerados, gemia como um passarinho assustado. As mãos dele desenhavam continuamente o corpo dela, de cima para baixo, de baixo para cima. Nascia dentro dele uma vontade de morrer nela.»
Quando mais tarde, Rebecca termina a relação com Oliver, que para ela sempre fora casual, ou como ela dizia «casual +», passamos a ver a vida do engenheiro. O tormento da falta que um corpo pode fazer na alma. Leia-se: «Os dias, as noites passavam arrastando cada vez mais o engenheiro para as memórias do corpo de Rebecca, do rosto de Rebecca. Da arte ímpar de Rebecca, na destruição de um corpo, na amplificação de um corpo. A luz, por detrás da cobertura cinzenta do céu, humedecia a cidade de Seattle. O engenheiro olhava a rua, esperava que as regras deixassem de existir e, de repente, fosse possível ver Rebecca lá em baixo, acenando e sorrindo. E as palavras trocadas, os gestos infligidos, a memória a fazer o seu trabalho de demolição de todas as paredes que ainda sustentavam o edifício da vontade do engenheiro. Revivia obsessivamente as últimas palavras de Rebecca, explicando a razão de acabar “não é nada pessoal, só não gosto de ti”. E, na verdade, gostar ou não gostar de alguém não tem nada de pessoal. É à revelia da nossa vontade. E não precisamos de enfatizar esse gostar. Por gostar podemos dizer simpatizar. Rebecca não simpatizava com Oliver, mas excitava-a a situação e o corpo dele.»
O que Jane Edwards nos mostra exemplarmente é que não sabemos como é que de repente no tronamos mais vulneráveis ao toque do outro, às palavras do outro, do que poderíamos imaginar. Ou como Edwards escreve: «De repente, sentimos como o humano é frágil, só, vulnerável como um vaso de porcelana da dinastia Ming. A vulnerabilidade abre as asas e passa a rondar-nos como abutres voando sobre a nossa carne, como se já estivesse petrificada. Oliver sempre se sentiu assim nas mãos e no corpo de Rebecca, mas agora sentia-se também assim em todas as horas do dia, como um cadáver que respira.»»

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A essência da literatura

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (18 Maio 2021)

«Barnes enfatiza a questão do tempo e não do espaço na definição de carta e, de certo modo, baralha-nos as contas. Pois, como escrevi atrás, estamos habituados a entender carta como um mecanismo de encurtar distâncias ou de aproximar «distantes». Ou seja, como uma forma de anular ou enfraquecer o espaço. Assim, e até pelo título do livro de Alice Barnes, «O Espaço Desarmado», ficamos perplexos com esta enfatização do tempo e não do espaço no mecanismo da carta. Veja-se como Alice Barnes nos mostra o tempo como característica fundante e fundamental do mecanismo da carta: «O tempo que as palavras que se enviam têm: 1) a sua durabilidade, pois ficam ali guardadas para serem relidas continuamente por quem a recebe, por vezes até ao desespero, até à exasperação; 2) a sua ponderação, pois quem a escreve tem tempo de ponderar nas palavras que vai inscrever no papel. Uma carta pode ser o relato daquilo que está a acontecer longe daquele a quem a carta é enviada. Pode e é, a maioria das vezes. De facto, a carta dá notícia do longínquo, pretende encurtar a distância que separa quem escreve de quem lê, daquele que está no centro dos acontecimentos daquele que está longe deles. A carta desarma o espaço. Como? Com tempo.»»

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