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A morte de um apicultor – parte 3

Paulo José Miranda no Hoje Macau (26 Junho 2021)

«De qualquer modo, um casamento acaba sempre por encontrar as suas próprias leis. Veja-se como o narrador descreve o seu: «Saber mais do que os outros era uma maneira de ficarmos ligados um ao outro. // E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, sem grande sensualidade, mas de um modo confortável. Sentíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado e que, por causa dessa solidão, tinham algo em comum e deixavam de ser solitários. Mantermo-nos juntos, a Margareth e eu, era uma forma de dizer.» (63) Outro modo substancial de nos pôr a ver o mundo como usualmente não vemos prende-se com a aquilo que escreve acerca das abelhas. Leia-se: «A morte de um enxame sente-se quase como a morte de um animal. É uma entidade que deixará saudades, como se fosse um cão, ou, pelo menos, um gato. // Mas a morte de uma abelha deixa-nos completamente indiferentes. Deitamo-la no lixo, e já está.» (19)

Esta passagem é absolutamente estonteante. Gustaffson mostra-nos aqui duas coisas extraordinárias e distintas. Primeiro, não é que nas abelhas o colectivo é que importa e não o individual, mas como isso nos faz pensar imediatamente no ser humano. Ele não fala do humano, mas obriga-nos a pensar nele, ao descrever tão clara e categoricamente a distinção entre colectivo e individual, entre enxame e abelha. Aliás, mais tarde, no segundo capítulo, escreverá: «(“A mim próprio”, “eu próprio”: hoje em dia. Acho esta expressão absurda. Não tem conteúdo.

Mas não consigo explicar bem.)» Este não consigo explicar é fundamental ao longo do livro. Nós não conseguimos explicar bem as coisas, não só aquilo que está fora de nós, mas também aquilo que está em nós. Por conseguinte, por que carga de água um romance teria de ser capaz de explicar? O que melhor pode fazer é mostrar, no sentido de Wittgenstein, na célebre distinção entre mostrar e dizer. Escreve o filósofo que nós podemos dizer aquilo que pode ser explicado, aquilo que pode ser colocado em uma proposição lógica. O que não pode ser colocado em uma proposição lógica deve ser mantido calado, em silêncio. Ou então, mostrar. Mostrar é a função da arte. Através da arte podemos mostrar o que nos acontece, mas através da lógica, não. Seja como for, naquela distinção entre enxame e abelha e mais tarde a incompreensão do «eu próprio», Gustaffson faz-nos pensar em tudo isto. Em tudo isto e muito mais que não consigo explicar bem.»

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