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A morte de um apicultor

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (8 Junho 2021)

«Esta será a primeira de quatro partes à volta de um livro do escritor sueco Lars Gustaffson, «A Morte de um Apicultor». A edição usada nas nossas citações é a da editora Marcador, na tradução de Mélanie Wolfram e Afonso Cruz. A seguir às citações, entre parêntesis, aparece o número de página desta edição. A edição original é de 1978.

Estamos perante um livro «sui generis», por várias razões. Primeiro, porque se trata de um livro composto por 3 cadernos, de cores e temáticas diferentes, deixada por um professor primário, que nos conta a história a sua história, embora tenha sido organizada por uma outra pessoa, que é quem começa a narração do livro. Como se o escritor se colocasse de fora do que está a escrever e nos dissesse: isto que vão ler não fui eu que escrevi, apenas organizei. De imediato, faz-nos lembrar de uma peça famosa de Pirandello, Esta Noite improvisa-se, onde no início é o encenador que vem ao palco, não para desculpabilizar-se, como faz Gustaffson no início do livro, mas para dizer que aquilo a que os espectadores vão assistir não é da responsabilidade do escritor Luigi Pirandello, mas dele, o encenador.

Embora ao contrário, com uma estratégia inversa, estamos perante o mesmo artifício: a de fazer com que o escritor não seja o foco da atenção do leitor ou espectador. Embora o problema da dificuldade de identificação do que é real e do que é ficção seja muito maior em Pirandello do que no escritor sueco, pois a obsessão filosófica primeira de Gustaffson é a linguagem. E adiantei-vos uma citação: «Contrariamente ao que acontece com a percepção das cores, a linguagem não desenvolveu palavras específicas para definir as sensações das dores. Elas não têm nome.» Faltam-nos palavras, não apenas para nos expressarmos, mas para nos conhecermos. Ainda nos falta palavras para sabermos quem somos. Isto sempre foi uma preocupação maior do filósofo Wittgenstein. E estas preocupações no livro de Gustaffsson alargam-se no terceiro capítulo, «A Infância», onde o narrador lembra várias expressões que ouvia na infância, em reuniões familiares, e analisa-as para além do esperado, isto é, escalpeliza as expressões tentando mostrar o que está de facto por detrás daquelas frases que são repetidas quase sem se pensar nelas. Dou alguns exemplos: «para cúmulo da desgraça»; «uma pessoa que eu cá sei» ou «é sempre a mesma merda». Quase no final do terceiro capítulo «A infância», lê-se: «Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Mas além da questão do entendimento ou não entendimento da linguagem, Gustaffson liga o uso compulsivo dela, o estarmos sempre a falar como uma espécie de procura de redenção ou, pelo menos, um acreditar que alguém nos ouve. Que alguém nos ouve sinceramente. Leia-se: «Liberta a humanidade sofredora /

Mas primeiro liberta-me a mim, porque fui quem sofreu mais. / Basta apanhar o eléctrico durante uns quilómetros para perceber a situação. E não conseguirem queixar-se de nada, queixam-se das suas sagradas doenças, das dores dos joelhos, das pedras dos rins, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das diarreias ou das fezes duras como rochas, que fazem barulho ao bater no fundo do penico. / E enquanto falam disso, imaginam que alguém lhe dá importância, só por se queixarem.»

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