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A morte de um apicultor – parte 3 e última

Paulo José Miranda no Hoje Macau (29 Junho 2021)

«Podíamos com toda a segurança apresentar «A Morte de um Apicultor» como um grande livro de porquês. Mesmo quando as frases nos aparecem em forma de sentenças, actuam dentro de nós como perguntas. Veja-se o caso das frases do capítulo V, que tem o título «Quando Deus acordou». A primeira diz: «Em vez dele, havia uma mãe.» (165)

Em vez dele o pai. A ideia de Deus ser uma mãe põe-nos a pensar. Não é Deus ser uma mulher, pois isso não é nada de novo, é Deus ser uma mãe ao invés de um pai. Se Deus fosse uma mãe, a humanidade estava como estava? A outra frase, e é a que fecha este mesmo capítulo V: «Se Deus existe tudo é permitido.» Frase que inverte a posição de Dostoiévski em Crime e Castigo, se bem a que ele não o diga «ipsis verbis». Mas mais interessante ainda é a frase anterior, que a língua começou a morrer. Num mundo perfeito a linguagem não faria falta. Gustaffson está claramente a dizer-nos que a linguagem é aquilo que mais nos magoa, sendo ao mesmo tempo aquilo que nos define e nos permite a criação de todos os símbolos que nos ajudam na pragmaticidade da vida. E, obviamente, num mundo onde a linguagem desaparece, a última frase teria de ser, sem margem para dúvidas: Se Deus existe tudo é permitido. Esta frase tem de ser lida à luz da esperança. Tudo pode ser, num mundo onde se possa voltar para trás.

Onde se consiga inverter o tempo. No fundo, deus é esperança. Aquilo a que chamamos deus poderíamos chamar esperança, e assim passamos a vê-lo melhor.»

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O silêncio de Deus

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (5 Maio 2021)

«No entanto, e como aconteceu a muita gente, não sou exactamente quem queria ser. Ou o que queria fazer. O leitor conhece a pergunta porque ainda está a ecoar na sua memória: “O que queres ser quando fores grande?”, perguntaram-nos tantas vezes nessa altura em que mal conseguíamos sustentar a nossa personalidade titubeante. E nós respondíamos, encostados aos nossos ídolos do momento ou às profissões que julgávamos mais aventureiras.
Pela minha parte, a escolha é sortida e foi evoluindo com a idade: piloto de Spitfire pela Royal Air Force em 1940 (sim, eu sei, não digam nada, obrigado), detective privado como o Philip Marlowe, vocalista de banda rock, realizador de cinema, diplomata, jornalista (esta lá consegui), escritor, dandy diletante (esta também, mais ou menos).
Mas reparava que muitos dos meus amigos tinham um fascínio comum: queriam todos ser astronautas. O como e o porquê não interessavam: apenas viajar pelo espaço. Tinha cinco anos quando vi a chegada do homem à Lua e também eu fiquei siderado por aquela extraordinária conquista. Mas não me chegava.
Até que há poucos anos descobri que também gostaria de ser astronauta. Corrijo: um astronauta chamado Michael Collins. »

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