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Afundar convicções

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (9 Fevereiro 2021)

«Sara não conseguia imaginar a sua vida ligada a um homem. Viver para servi-lo, para lhe ser fiel, para tomar conta de uma casa, de uma família. Ver um homem chegar ao fim do dia a casa como se fosse um altar que ganhara vida. Nessa noite, ao jantar, resolveu enfrentar o pai. Pousou dramaticamente os talhares, pediu que lhe prestasse muita atenção e disse: “Para que quer que eu continue a mentira, pai? Porque quer fazer com que eu diga que vou ser fiel para sempre e ter filhos que continuem este modo de vida, que é uma irrealidade que todos à nossa volta teimam em proteger?
Porque quer que eu faça isso? Não vê que não conseguirei viver assim? Eu não preciso de um homem para viver, pai, mas preciso de ler.” Contrariamente ao que Sara esperava, o pai sorriu e olhou-a fixamente nos olhos, antes de começar a falar: “Diz-me uma verdade e podes fazer o que quiseres. Uma só, que se segure à chuva e ao sol, à passagem do tempo. Não vês que não nos resta nada a não ser a mentira? Não há uma única casa que não tenha sido erigida com mentiras, Sara! São elas que fizeram as paredes, os telhados, as cercas que delimitam o que é de cada um. Foram as mentiras que delimitaram as fronteiras dos estados e deste país. Achas que tudo isso é verdade? Há alguma verdade nisto? E achas que há mais verdade nos livros de que tanto gostas do que numa casa?” Parou de falar. Segurou os talhares para continuar a jantar, mas ainda antes de o fazer, e balançando a faca e o garfo, como se dirigisse uma grande orquestra, disse: “Casar com um homem rico, que te proporcionará tudo o que desejares e até coisas que não sabes que existem, não me parece que seja o pior que te possa querer. Se nada é verdade, minha filha, agarra na melhor mentira que puderes.” Quando se levantou da mesa, apesar de não ter entendido o pai, Sara sentia um medo desconhecido, como se a vida lhe tivesse revelado um segredo. Ainda antes de abandonar a sala de jantar, ouviu o pai dizer: “E ainda hás-de me dizer porque é que os livros são melhores que um homem para a tua vida! Achas que são palavras que te vão fazer feliz?” Era mais um furo no barco de certezas de Sara. Retirava-se ainda mais abalada. »

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