«Uma cena por semana: escrevo, esqueço-me, regresso, continuo…»
«Gonçalo continua absorto na sua nuvem de fumo, há qualquer coisa de mágico na forma como o fumo se espalha pela divisão, iluminado pelo luar que vem da janela. Os pássaros nocturnos vão picando o ponto na noite silenciosa que se adivinha lá fora. Ouve-se uma descarga do autoclismo, depois água a correr do lavatório. A porta do fundo abre-se, Valério entra, volta a fechá-la atrás de si e aproxima-se da mesa. Abre o frasco de tremoços e trá-lo consigo de volta ao seu lugar.»
«Uma cena por semana: escrevo, esqueço-me, regresso, continuo…»
«Gonçalo escreve à máquina, sentado na mesinha em frente à janela. Tem uma garrafa de vinho aberta e o candeeiro a petróleo aceso. A janela aberta por onde entra o luar e uma brisa nocturna. Gonçalo escreve com intensidade, a percussão das teclas é impiedosa. Batem à porta e Gonçalo assusta-se, como se acordasse de um pesadelo. Abre a porta a medo. É Valério, sorridente. Traz um saco de compras cheio e uma garrafa de vinho na mão. Ele avança para a mesinha, pousa a garrafa de vinho e tira mais quatro garrafas iguais do saco, para além de três pacotes de frutos secos, dois de batatas fritas e um grande frasco de tremoços. Valério repara no montinho de folhas dactilografadas, ao lado da máquina, e passa-lhes o polegar, avaliando a quantidade de texto produzida. Olha para Gonçalo e aquiesce com um trejeito de boca. Aponta para o montinho, como se perguntasse: “posso?” e Gonçalo aquiesce, também com um trejeitozito, como se respondesse “por quem sois!” Valério fecha a janela, pega no montinho e trá-lo até à sua cadeira de madeira onde se senta a ler. Gonçalo vai até à lareira, pega em duas pinhas e pousa-as lá dentro. Depois cobre-as com bastante caruma e acende-as. O lume leva o seu tempo a aparecer. Depois põe dois toros por cima do lume, não deixando que este se apague. Quando lhe parece que tudo corre pelo melhor, volta à mesa para abrir uma das garrafas de vinho. Pega no saca-rolhas…)
«Uma cena por semana: escrevo, esqueço-me, regresso, continuo…»
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