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A outra doença

Luís Carmelo, no Hoje Macau (28 Janeiro 2021)

«Mesmo que se parafraseie William Burroughs – “The theater is closed” –, sabemos bem, reatando a citação, que “não há́ lugar fora do teatro, que tudo ocorre no mundo, que não há lugar para onde escapar” neste ‘face a face’ com as encenações tecnológicas e telemáticas que nos envolvem (como se não existisse um lado de fora e um lado de dentro nesse envolvimento). Na verdade, o espectáculo sempre correspondeu ao mais profundo dos humanos porque condensa todas as histórias possíveis e todas as montagens imagináveis, para além de proporcionar, sem paralelo, a fruição de intensidades imediatas. O espectáculo pode imitar, truncar ou parodiar de formas muito diversas, condensando, divergindo e abrindo-se sempre a um leque muito grande de escolhas. Há 25 séculos, na ‘Poética’, Aristóteles disse-o de modo pleno, quando tornou clara a superioridade da tragédia face à epopeia: “A tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia” (…) “e demais, o que não é pouco, a melopeia e o espectáculo cénico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios.”
Sair deste aquário de imagens que quase o transbordam em intensidade, como dizia o filósofo (sem imaginar que o mundo se transformaria todo ele num vasto teatro), vai ser tão penoso quanto sair do próprio mal da pandemia. Se a vacina nos promete esta segunda saída, já a primeira arrastará consigo uma patologia de vivências e de memórias difícil de curar. Só daqui a uns meses – ou talvez anos – entenderemos que a saturação de imagens com que temos vindo a viver, durante este último ano, somou à tragédia real uma disrupção de óptica (e de objectividade) com origem em fantasias, negacionismos e ‘fake news’ da rede, na inflexibilidade dos calendários políticos (por que não se adiaram as presidenciais, por exemplo?), nas abjectas estratégias sacrificiais (o caso mais óbvio foi o de “salvar o natal”) e, também, claro, na obsessiva distopia televisiva.
A banalização resulta de uma repetição interiorizada que não dá sequer tempo para separar o fundamental do acessório ou mesmo, tantas vezes, do desprezível. É esta uma das consequências da instantaneidade tecnológica.
Neste tipo de processos que conduzem à vulgarização, as imagens não apenas fazem por encadear como têm vida própria. Razão tinha Adolfo Bioy Casares, no seu pioneiríssimo romance ‘A Invenção de Morel’ (prefaciado por Borges há oito décadas exactas), quando lá escreveu – “A hipótese de as imagens terem alma parece confirmada pelos efeitos da minha máquina sobre as pessoas, os animais e os vegetais”.»

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Natal: uma calamidade desejada

«Fiquei estupefacto, quando, em Outubro passado, o PM e o ministro da economia, cada um à sua maneira, apareceram nas televisões a dizer que a estratégia anti-pandémica do governo passava por “salvar o natal”, sabendo-se que estávamos à distância de pouco mais de um semestre para que o processo de vacinação começasse a produzir alguns efeitos. Cálculos matemáticos publicados pouco depois disso referiam um desmedido número de mortos e um grande número de infectados, caso se optasse por não anunciar medidas restritivas no natal. Unânimes e conscientes do sacrifício colectivo, a medida de ‘liberalização’ avançou. É evidente que tudo o que agora está a acontecer em Portugal tem essa estranhíssima decisão como fonte primeira.»

Luís Carmelo, no Hoje Macau (21 Janeiro 2021)

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