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O homem que quis matar o tempo

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (23 Setembro 2021)

«Cronos é uma invenção nossa. Criámo-lo para dar nomes aos dias, para sabermos identificar saídas ou grades. E assim o fazemos, reconhecendo angústias, alegrias e dificuldades. A nossa reacção ao fim que nos é comum também dele deriva: quando alguém parte ainda jovem surpreendemo-nos e choramos mais a perda. “Foi antes do tempo”, lamentamos. Mas que tempo é este? Qual o tempo ideal para se ser, para viver? Ninguém o sabe nem nunca o saberá porque Cronos é flexível, veste cada um de nós de forma diferente e oferece-nos a nossa sentença irreversível de modo desigual e personalizado.

Por esta e outras razões não consigo imaginar nada tão poético e ao mesmo tempo tão utópico como querer matar o tempo, literalmente. A expressão que utilizamos é falsa porque considera o tempo associado a uma actividade; “mataríamos” o tempo pela negação dessa actividade por outra.»

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A fisonomia desaparecida

Luís Carmelo no Hoje Macau (3 Maio 2021)

«A mulher empurrava o mundo inteiro e, no entanto, o carro do bebé estava vazio. Para ela, este caminho diário era uma floresta proibida, quase fechada, e, apesar disso, o olhar do homem como que o lavrou em profundidade, ao ponto de ter pressentido que era ele quem a impelia em movimento. Foi deste modo que se sentiu tentada como antes nunca tinha acontecido.

Voltaram a olhar-se. O tempo. O homem e a mulher observam-se. Ainda o tempo.
Com dimensões diferentes as mãos do homem e da mulher são rigorosamente iguais, todas em forma de bandeira com os dedos juntos e sem flexão. O perfil e a forma do nariz dão a ver cópias quase precisas. Os olhares traçam em simetria uma brancura prestes a ser preenchida e repetem essa intenção inicial do mesmo modo no homem e na mulher.

Ela abre-se num estuário magnífico ao pau que o homem transforma em pedra. A afluência, para trás e para a frente ou levemente circular, permite ao infinito o seu sumo de possibilidades.

Ela pronuncia em voz baixa que os ombros são aquela parte que nos frutos se alarga das sépalas até à polpa. Ele responde que a bacia é o tratado que o corpo assina com a imagem secreta de um equador. Riem os dois. Ela volta a dizer que a cintura resolve em forma de golfo todas as peças da intimidade. Como se essa reentrância ditasse um ou outro verso em sânscrito. Ele abriu muito os olhos e ela imitou-o com a firmeza de uma flauta.

O homem e a mulher são iguais, nada os separa. A mesma ondulação nos braços, a mesma forma do queixo, a mesma fisionomia a arquear o fim do dia.»

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Aprender a andar na minha Holanda

Luís Carmelo no Hoje Macau (20 Maio 2021)

«A palavra “perdição” é ambígua por natureza. Tanto se refere a uma pessoa ou coisa que desperta uma paixão irresistível por outrem como se refere a vício e até a condenação eterna. Por outro lado, designa ainda a figura da errância (uma pessoa perde-se, um pensamento perde-se, um mar perde-se, etc.). A palavra “perdição” ensina de facto a andar em muitas direcções. Por vezes ensina mesmo a voar.
E foi a voar muitas vezes sobre a Holanda que revisitei o abstracionismo geométrico de Piet Mondrian e as suas teosofias coloridas. Os campos, desenhados por polders de cromatismo sempre diferenciado e recortados por moinhos e canais, ilustram com concreta nitidez aquilo que é o neoplasticismo assim como o rasgo dos artistas que, a par de Mondrian, souberam cativar esta arte das raras proporções, casos de Theo Van Doesburg, Vilmos Huszar, Gerrit Rietveld, Georges Vantongerloo ou de Jan Wils. A paisagem é, de facto, uma enciclopédia de grande limpidez – que alimenta a errância, o vício e a própria paixão – e que sabe transformar o que parece abstracto em tangível, quase palpável.
Foi então que percebi que a minha Holanda é uma ilha. Incorporei-a, tal como a floresta incorpora a sua água, muito antes de ter conhecido o país com o mesmo nome. A minha Holanda é um conceito para a vida, um segundo perfil ou mesmo um contorno que me acompanha. Tudo começou no meu livro de geografia na pré-adolescência e, mais tarde, quando os aviões me levaram a sobrevoar (em ponte aérea de vários anos) o pequeno país onde haveria de viver durante uma década. O acaso e o fascínio atraem o nomadismo interior (a errância) e sabem convertê-lo em sedentarismo. »

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O futuro eterno agora

«A canção em si mesma não me importa tanto, poderia ser outra qualquer, desde que o teledisco fosse aquele. É, por conseguinte, um livro sobre um teledisco. E este mostra-nos os Metallica a tocarem numa casa cheia de jovens raparigas seminuas, em ambos os pólos dos excessos: dançam, bebem, tomam drogas, têm sexo; caem, vomitam, adormecem. E isto tudo nos mundos fechados que são uma casa e um teledisco de pouco mais de 4 minutos. Aquela casa e aqueles 4 minutos representam mais do que um mundo, representam um modo de viver a vida.»

Paulo José Miranda, no Hoje Macau

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