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Está quase, já passou

Valério Romão no Hoje Macau (26 Fevereiro 2021)

«Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente.
Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato.
Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado.»

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