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Nefelibata de trazer por casa

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (10 Março 2021)

«Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Março
A parada e resposta do Diário das Nuvens dura há 50 dias. Se soubesse extrair uma raiz do quadrado diria que nunca antes tinha estado tanto tempo a escrever ininterruptamente. Se me ficasse pela leitura faria melhor ao ecossistema, mas perdoe-se o mal que faz pelo bem que (ainda) sabe. Celebrámos a brincadeira com uma antologia em versão lençol que me pôs logo a sonhar com variações na pele de Lisboa: https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/ O entusiasmo promete para já variações mais fílmicas, mas a brincadeira tornou-se caso sério. Surgem reacções comoventes, onde cada peça se revela espelho ou consolo. Além da partilha de interesses e trabalhos artísticos em torno destes fascinantes habitantes dos céus. Para celebrar a data redonda atropelei a regra e olhei por breves instantes para o miradouro (junto vai a visão correspondente do João [Francisco Vilhena]). As nuvens também se avistam umas às outras.
«Pare, escute, olhe. Na passagem de nível sem guarda que se atravessa, a paragem passou a ser um sexto sentido muito. Nas camadas superiores está posto trânsito dos diabos. As raivas que se condensam em rangentes nuvens dentatas não respeitam nada. Ao passo que as robustas saudades acumulam-se pacientando pela queda do sinal verde na passadeira vermelha. Os enxames de cristais de gelo circulam indiferentes em contra-mão. Andam praí a cuspir nuvens da boca para fora. Vai daí a locução própria do nível informal atrai cada vez mais praticantes. É vê-los equipados com desvelo a velar zelosamente pela nuvem de palavras. Um toque dá acessos e conta as vezes. Atracção fatal pelo artificial, a dos fazedores de chuva. Uma gaze mais não é senão nuvem feita tecido trocando consolo pela tintura do sangue. E quem chamou nuvem turva à primeva ecografia, primeira Eva?»

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 9 Março
Perto tem morrido gente, mas também alguns nascimentos se anunciam e nisso sopra leveza. Vem grávido este livro cujo lançamento será gravado hoje, mas para acontecer mais adiante no âmbito do Ronda, o festival de poesia de Leiria (o novo normal bem tenta fintar o tempo). Por estar na colecção Mão Dita, por ser poesia, além do primeiro neste famigeradano, abre ainda janelas primaveris no coração pesadote da abysmo. «Cordão», de Ana Freitas Reis, com capa de Eugénia Mussa, diz como quem dança que o corpo «é um evento apaixonado» e que faz parte do mistério, que a mulher não abdica do seu papel principal, que ainda há lugar para o espanto e o assombro, que Deus faz parte da fauna e flora, que a investigação maior do mundo só pode ser feita pela palavra, ainda que condenada ao fracasso. Canta ainda muita música. Transbordemos portanto, que nem «Pégaso»:

“Só o que gera salva
e tudo o que nasce deixa buraco,
o fino corte da beleza.

Não seremos nunca o pássaro afinado.
Porque o corpo é água viva
e todo o movimento
é duelo contraditório.

O jogo é deixar transbordar
atravessando o corpo.
O campo empírico
tem um modo próprio de pulsar.

Sobram-nos suspiros sob a cintura.
Por instantes liberta-se
o fardo empoleirado aos ombros
dando um salto que não depende
do porte do cavalo.”»

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